“TEREMOS SEMPRE PARIS”
Crónica publicada no Jornal de Mafra
TEREMOS SEMPRE PARIS
Regresso de quatro dias de trabalho em Paris.
Pelas escolas, com os meninos a mostrarem o que sabem de português e as professoras empenhadas em que eles não esqueçam a sua língua e as suas raízes.
Faço algumas vezes este tipo de trabalho, pelas nossas comunidades espalhadas por esse mundo. Estive recentemente em Toronto a fazer o mesmo.
Mas, independentemente do meu trabalho—Paris será sempre, para mim, um lugar especial. Um lugar onde eu poderia viver.
Passadas as fronteiras portuguesas, Paris é e há-de ser sempre, a minha cidade.
Vivi em Paris nos anos 60—e isso marca qualquer pessoa.
Bati estrondosamente com a porta, virei costas à pátria e à família, meti na mala “Os Passos em Volta” do Herberto Helder (que tinha saído há pouco tempo), para que a língua me mantivesse viva, e aterrei em Orly, sozinha, sem saber o que ia fazer de mim .
Paris encarregou-se de me ensinar, partindo daquela frase tão certeira da Gertrude Stein, “não é tanto o que Paris nos dá; é sobretudo o que Paris não nos tira”.
Vivia no Quartier Latin, no 19 da Rue Cujas, à beirinha da Sorbonne. Chamava-se aquilo, pomposamente, “Grand Hotel Saint Michel”, mas de “grand” não tinha absolutamente nada. Quartos minúsculos onde cabia a cama e pouco mais, paredes a precisarem de tinta, uma escada íngreme e em caracol que vinha do rés do chão. Por lá se albergavam intelectuais e exilados políticos, estudantes sem dinheiro vindos do fim do mundo. Quem não podia pagar o quarto ao fim do mês, fazia a limpeza dos quartos todos durante o mês seguinte.
A dona chamava-se Madame Salvage. E protegia ferozmente os seus hóspedes, sempre com receio do que a polícia pudesse fazer. Por isso só mesmo quem ela conhecia muito bem é que conseguia passar da entrada. Contava-se que Fidel a convidara a ir a Cuba e lhe dera uma recepção semelhante a um chefe de estado, por todos os cubanos que ela tinha albergado no seu hotel até ao dia em que Castro chegou ao poder—sem nunca lhes exigir um cêntimo.
Aquele lugar foi a minha verdadeira universidade.
Ali conheci o Jorge Amado e a Zelia Gattai, o Jorge Semprún, o Nicolas Guillén, Neruda, e tantos outros. Ali convivi diariamente com António José Saraiva, Jorge Reis, Teresa Rita Lopes. O quarto de Maria Lamas (exilada política e minha prima) era o lugar aonde todos acorriam. E as conversas não tinham hora de acabar.
Havia em frente um café (Café Cujas, evidentemente…) que nunca fechava, a não ser uns poucos minutos necessários a uma rapidíssima limpeza.
Podia lá passar-se a noite inteira, fumando Gauloises acesos com um isqueiro onde se lia “salut les copains”,e gastando os trocos no juke-box onde Bécaud cantava “nous irons/dimanche à Orly/ voir les avions/ por tous les pays…”
E às vezes aos domingos íamos mesmo ver os aviões a Orly, o único aeroporto, com terraços e esplanadas onde se podia sonhar com o mundo inteiro. Dizia-se que era o lugar mais visitado de Paris, muito mais do que a Torre Eiffel.
Descíamos o Boulevard Saint Michel com o cheiro dos castanheiros a entrar pelo nosso corpo, entrávamos na Gibert-Jeune, onde se compravam uns cadernos quadriculados como nunca mais houve em lado nenhum. Almoçávamos na “Source”, que se dizia pertencer a Françoise Sagan… Comíamos loukoum nos quiosques da Rue Monsieur le Prince, tentávamos todos os truques para roubar livros na Livraria Maspero.
De vez em quando tentava encontrar os lugares e as ruas que os romances de Simenon me tinham dado: “Brasserie Dauphine”, Rue Richard Lenoir, le Quais d’Orsay (ainda sem museu,claro…),mas nunca me lembro de ter por lá encontrado o comissário Maigret.
Depois um dia , em Maio de 1968, caiu-nos uma revolução no colo.
O Quartier Latin ardia, toda a cidade ardia, e nós ardíamos pelo meio das barricadas da Rue Gay-Lussac, ao ouvir palavras de ordem como “é proibido proibir” ou “a imaginação ao poder”. As ruas cheiravam a gaz lacrimogéneo, mas também às canções de Léo Ferré e Anne Vanderlove. Na Sorbonne, Jacques Higelin tinha colocado o seu piano, e ali se estabelecia um local de permanente delírio. Uma greve geral ameaçava eternizar-se, até que tudo teve de acalmar—mas nunca mais fomos os mesmos.
Em Paris amei muito e desamei muito—como acontece sempre quando se tem 20 anos.
Quando finalmente regressei à pátria, jurei não voltar. “Nunca voltes ao lugar/ onde já foste feliz” cantaria o Rui Veloso muitos anos depois—mas é difícil não voltar a Paris.
Regressei 20 anos depois.
O cheiro dos castanheiros continuava igual.
Mas o Grand Hotel Saint Michel estava transformado em hotel de charme. Com quatro estrelas, banhos turcos e sala de fitness.
E nada nele recorda o tempo em que ali se acreditou que era possível mudar o mundo.
Nunca por lá voltei a passar.
De qualquer modo, podemos sempre evocar tempos passados e repetir, como Bogart em “Casablanca”, “teremos sempre Paris”. Não são muitas as cidades de que se possa dizer o mesmo.
A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.
Não deixem de ver mais cronicas aqui publicadas: Cronicas da Alice Vieira no Jornal de Mafra
Espreitem aqui o Jornal de Mafra e aqui o Facebook do Jornal de Mafra
Vejam aqui os testemunhos: Retratos Contados
Espreitem aqui as Sugestões Retratos Contados
Sigam-nos no Faceook : Retratos Contados