” A TRALHA”

“A TRALHA”

Crónica publicada no Jornal de Mafra

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A TRALHA

Os filhos são bichos estranhos…. Olhamos para eles e murmuramos:

“são exactamente a minha cara”.

Ou: “são iguais a mim em tudo!”

E, vai-se a ver, são pessoas completamente diferentes.

E ainda bem: que seria deste mundo se todos fôssemos iguais?

A minha filha, por exemplo

Que é das pessoas com quem eu me dou melhor (modéstia à parte, diga-se que eu também me dou bem com quase toda a gente…), e que é uma cópia de mim em muitas coisas—mas noutras é diametralmente oposta.

Uma das coisas que, irremediavelmente, nos separam—é “a tralha”.

Ou melhor: aquilo a que ela chama “tralha”.

–Palavra que não sei como é que tu consegues viver no meio desta tralha toda –diz-me ela muitas vezes quando vem cá a casa.

Acontece que a minha filha, embora já não seja propriamente uma criança, ainda não viveu tempo suficiente para ter a casa dela cheia de tralha e—pior do que isso—para não poder viver sem ela.

Aquilo a que ela, meio desdenhosamente, chama “tralha” são objectos que marcaram toda a minha vida.

Que me foram dados por pessoas muito amadas e que já morreram.

Ou que estão vivas mas que, por qualquer motivo, desapareceram da minha vida.

Ou que estão longe e assim parecem mais perto.

Ou que aparecem pouco, mas são muito importantes para mim.

Ou que aparecem muito, mas mesmo assim é bom lembrar-me delas sempre.

É verdade: a minha casa está cheia de coisas destas.

Que, aparentemente, não servem para nada (daí que a minha filha as englobe no seu pessoalíssimo conceito de “tralha” …) -mas sem as quais eu não conseguiria viver.

Ou viveria bem pior.

Acho que não seria capaz de viver numa casa decorada               por um profissional dessas coisas.

Um profissional que não iria certamente encher as minhas mesas de pedras, folhas secas, búzios, frascos cheios de canetas, postais, molduras e mais molduras.

Tudo o que eu tenho em casa—tirando, evidentemente, as coisas necessárias à nossa vida de todos os dias…– tem uma história, recorda uma pessoa, lembra um lugar ou marca um tempo.

O Mário deu-me esta pedra: a gente olha para ela e é tal qual o rosto de uma pessoa a sorrir para nós. E ele disse: ”quando eu não estiver ao pé de ti, já tens quem se ria como eu” . E como tinha a paixão das folhas, enchia-me também com elas a casa. Às vezes, abro um livro e de lá cai uma folha seca. E eu sei exactamente de que árvore veio, em que dia, e por que razão a guardei.

Esta coisa estranha de madeira, a tapar um pequeno espelho, deu-me a minha amiga Mara em Timor, e explicou que temos sempre de tapar muito bem os espelhos, para que eles não nos roubem a alma. Está no rebordo da lareira—ao lado de muitas pedras que nessa altura trouxe comigo das areias de Liquiçá.

Este postal, comigo a dançar sobre as arribas da Ericeira, foi uma colagem feita e enviada pela minha amiga Cristina, com uma frase que me ajuda sempre nos dias maus.

Este coração de vidro deu-me a Gabriela, que enfrentou comigo maleitas complicadas—de que nos safámos ambas, porque somos difíceis de abater! Está aqui, mesmo ao lado de uns corações de mármore que meu amigo António me deu, numa tarde em que ambos chorámos baba e ranho no ombro um do outro. Em cada um destes pequenos corações está gravada uma palavra: “Peace”, “Love , “Harmony”  e “Wisdom”.

E há rituais que se cumprem todos os anos: na mesa já está desde hoje um cesto com quatro romãs, porque assim que Novembro se aproximava o Filipe entrava sempre em casa com elas e dizia “o outono acabou de chegar”. Este é o primeiro ano em que ele não vai dizer isso e por isso elas foram colocadas por mim.

E por isso fico tanto tempo a olhar para elas.

E o que era eu sem os retratos que me espreitam de todos os cantos da casa? Como podia andar pelo corredor, pelos quartos, pela sala se eles não olhassem para mim? Se eu não ouvisse as vozes, tão nítidas, que saem das molduras?

E agora digam-me lá como é que eu posso chamar “tralha” a isto.

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A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.

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