“DIA DA MULHER”

“DIA DA MULHER”

Crónica publicada no Jornal de Mafra

Dia-Internacional-da-Mulher-2015

DIA DA MULHER

 

Ainda hoje me lembro dos gritos dela.

Nesse tempo eu vivia em Cascais, num prédio de três andares e onde quase ninguém se conhecia. Para já, muitos dos inquilinos só apareciam em Agosto, vindos lá das suas emigrâncias francesas.

E os outros saiam todos muito cedo e regressavam todos muito tarde.

Menos os vizinhos do terceiro andar.

Eu chegava tarde do jornal; eles chegavam ainda muito mais tarde de um qualquer trabalho que eu não sabia qual era; eu saía muito cedo para apanhar o comboio para Lisboa, eles habitualmente ainda ficavam em casa.

Mas havia noites em que o choro e os gritos dela se ouviam na praceta inteira. Nós vínhamos à janela, olhávamos uns para os outros, e não sabíamos o que fazer.

A polícia, sempre tão pronta a actuar quando os clientes do pequeno bar ao fundo faziam mais barulho do que deviam, inexplicavelmente estava sempre distraída quando, daquele terceiro andar, rebentavam os gritos, as imprecações dele, as ameaças, e o barulho de vidros e louça que se partia.

Numa das noites em que tudo foi (ainda mais) insuportável, no patamar da escada eu disse aos outros vizinhos, parados às suas portas, que ia telefonar para a polícia.

Iam-me matando.

Se eu não sabia que aquilo era zanga de marido e mulher.

Se eu não sabia que não tinha nada que me meter pelo meio.

Se eu não via os dois sempre juntos, e com ar muito feliz.

Se ela quisesse denunciar, que denunciasse ela, isto é assim mesmo, nunca se sabe o que se passa dentro das casas dos outros.

E rematavam sempre com aquela frase que justifica todo o nosso egoísmo:

— Cada um sabe de si.

Se calhar eu não lhes devia ter dado ouvidos e devia mesmo ter chamado a polícia naquela noite.

Mas não chamei.

Uma manhã, ia eu a correr para a estação, encontrei-a a descer a escada, olhei para ela, ela olhou para mim de sobrolho vagamente franzido, perguntei “precisa de alguma coisa?”, ela abanou a cabeça e correu porta fora.

Eu estava ligeiramente atrasada e não insisti. Lembro-me de ter entrado a correr para a carruagem já ela estava quase a fechar-se—e, ao olhar pela janela, vejo o vizinho do 3º andar parado no cais, dizendo-me adeus, com um sorriso que ainda hoje me dá arrepios.

Nessa noite fiquei em Lisboa.

E nunca mais os vi.

Desapareceram e nunca soubemos para onde. Ainda houve um dos vizinhos que disse que ele tinha sido internado, porque afinal tudo aquilo era mal de cabeça.

Há sempre destas explicações.

Recordava eu esta história há dias entre amigos quando, para surpresa minha, um deles veio outra vez com essa ideia de “eles lá sabem, não nos devemos meter, não temos nada com isso, elas são adultas, e sabem muito bem o que hão-de fazer”

Pelos vistos, nem todas as notícias, nem todas as reportagens, nem todos os cartazes, nem toda a publicidade, nem todas as campanhas chegam para chamar a atenção sobre o dever de denunciar a violência doméstica—que aumenta assustadoramente.  E se esconde, e se mascara, e se envergonha, e tantas vezes se nega a si própria.

No dia 8 celebrámos, mais uma vez, o Dia da Mulher. E ainda bem.

E certamente que os floristas deixaram esgotar as gerberas, e as pastelarias venderam coraçõezinhos de chocolate o dia inteiro.

Mas para além disso era bom que todos parassem uns minutos para pensar neste problema.

Até porque dar gerberas e chocolates no Dia da Mulher, com jantar a preceito num restaurante à luz das velas, não significa que, na privacidade de quatro paredes, isso não se transforme em estalos, empurrões, ameaças.

Infelizmente todos nós conhecemos histórias assim.

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A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.

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