4ª Crónica de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza para se manterem ocupadas durante a quarentena.
Olha aquele idiota a deixar cair o gato pela janela…
“Ó Sr.Doutor ,tenha cuida…”
Vá lá, conseguiu agarrá-lo. Nem sei como. Por pouco não caíam os dois. E então é que ia ser bonito… Agora ninguém se chega ao pé de ninguém. Na semana passada houve um choque de três carros aqui na rua e foi um sarilho para alguém ajudar a tirar os tipos que lá estavam dentro…Também ainda estou para perceber como é que os três carros chocaram se não havia movimento nenhum aqui na rua.
O Sr. Doutor agora está mais simpático. Disse-me muitas vezes adeus, devia ser a agradecer-me por eu ter gritado, e eu lá fiquei feita parva também a dizer-lhe adeus muitas vezes. Doutor de quê? Não sei nem me interessa, que eu não me meto na vida de ninguém cá do prédio, eles têm a sua vidinha e eu tenho a minha, “chacan” governa-se, costumava dizer o Sr. Engenheiro, que sabia falar muito bem francês. Dizia a minha senhora, claro, que para mim, francês ou chinês é a mesma coisa. Ainda sei algumas palavras em “brasileiro”, por causa das telenovelas, e sei duas palavritas de espanhol, porque a minha senhora deu-me uma semana de férias, quando eu me casei e eu e o meu Faustino fomos a Badajoz. Eu entrava numa loja e já sabia dizer “quiero caramielos”. Foi o meu Faustino que me ensinou. E eu nunca me esqueci. Mas de estrangeiro, é tudo o que eu sei.
Mas voltando ao Sr.Doutor, a Menina Perpétua, do r/c direito, disse-me uma vez , há muitos anos, que tinham andado por aí uns polícias à procura dele. Porquê, não sei. Mas agora também nunca vejo ninguém à porta dele, e vive sozinho com o gato.
Debruço-me, e não há ninguém na rua.
A Fonte Boa de Cima podia não ser grande coisa, e não era, mas quando eu fugia da cozinha e dos ralhos da minha mãe e me punha à janela, havia sempre gente a passar.
E eu chamava-os, nas aldeias sabe-se o nome de toda a gente, ou as alcunhas, e ficávamos ali. Nem me importava que eles me chamassem coisas feias, nem que às vezes me atirassem terra à cara, eles estavam ali por minha causa, e não estavam à janela da Floripes, que toda a gente dizia que era a rapariga mais bonita da aldeia.
Depois a minha mãe ia buscar-me por um braço e aos safanões, e só me lembro de a ouvir dizer “tu um dia desgraças-te, rapariga, e nem queiras saber o que o teu pai te faz.”
Eu nunca vi o meu pai. Mas a minha mãe falava sempre dele como se ele não tardasse a chegar a casa. Só muito mais tarde alguém me contou que ele tinha fugido para o Brasil e nunca mais tinha voltado. Se eu pudesse, tinha feito a mesma coisa. Se calhar é por isso que eu gosto tanto de telenovelas brasileiras. Agora já não são assim muito boas, até porque agora o que não faltam são telenovelas portuguesas e eu já me baralho, até porque nas portuguesas também entram brasileiros e nas brasileiras também entram portugueses.
Mas as primeiras…Havia uma com uma rapariga muito gira, toda despida, e um homem mais velhote mas que também não era de se deitar fora, e querem crer que depois destes anos todos ainda me lembro dela, muito dengosa (mal comparado parecia eu na minha janela a chamar os rapazes) a dizer assim com voz melada ,“ Seu Nacib, moço bonito…” Seu é como se diz Senhor em brasileiro. Até o nome do velho eu decorei… Depois destes anos todos…Também nunca conheci ninguém com esse nome.
Bom ,mas está na hora da telenovela. Portuguesa ou brasileira, é a primeira que me aparecer no televisor. Também, daqui a pouco estou a ressonar.
PÓ DE ARROZ E JANELINHA: Os folhetins da Alice Vieira e da Manuela Niza para se manterem ocupadas durante quarentena.
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