“Retratos Contados da Yolanda Lobo”

“Quem nasceu em Moçambique, tem forçosamente uma postura diferente!”

Até aos 18 anos viveu em Moçambique mudando-se depois para Lisboa…

Nasci num continente único, onde as crianças crescem felizes, descalças, brincam de sol a sol, são filhas da natureza e criam raízes que se agarram à terra como as lapas a uma rocha… Quem nasceu em Moçambique ou em qualquer outro ponto de África tem, forçosamente, uma postura na vida diferente pois que a magia desse continente perpétua em nós, dentro da pele e do coração para sempre!

Vivi sempre na Beira, junto ao mar, de frente para um mato imenso onde o som dos batuques me entrava pelo quarto ao entardecer e a luz do farol, em passagens ritmadas me varria a janela todas as noites. Foram 18 anos a ser iluminada pelo Farol do Macúti enquanto dormia, a ouvir estes sons étnicos e fortes, a sentir os cheiros poderosos daquele pedaço lindo de terra…

Do meu país conheci pouco. Porque sempre achei que teria o resto da minha vida para o fazer. Nunca me imaginei a viver fora de África. E nunca imaginei que sairia para não mais voltar… Mesmo assim, visitei muitas das cidades de Moçambique, da África do Sul e da Rodésia com os meus pais, pensando que mais tarde, na idade adulta, voltaria àqueles locais amiúde e com os amigos de sempre. Mas a vida trocou-me as voltas e esse plano ficou… adiado.

Fale-nos um pouco da sua infância.

Tive uma infância muito, muito feliz! Muito cheia de aventuras, de ar livre, de partilha com os outros. Em Moçambique vivia-se assim: com os outros e para os outros. E sempre fora de casa. O clima proporciona e o espírito também. Nasci em 56, altura em que a televisão não existia e os momentos de lazer eram vividos na rua inventando brincadeiras e se usava a praia e o desporto como uma segunda escola. Tão depressa estava no topo de uma árvore a roer uma goiaba enquanto lia um livro de aventuras ou fazia os trabalhos de casa, como brincava aos índios e cowboys, jogava aos “queimados” com os amigos do “muro” (local de encontro ao final do dia), ou corria para os encontros dos escoteiros, para as aulas de patinagem, para a classe especial de ginástica rítmica, para as aulas de vela ou subia a Torre da Igreja do Macúti para diariamente tocar o sino e as badaladas que marcavam as 18h…

Vivia intensamente e feliz com um grupo de amigos que inventava brincadeiras loucas e divertidas, cheias de adrenalina e risos constantes. E á noite “desmaiava” na cama, morta de cansaço, pronta para me levantar às 5h30m e preparar-me para um percurso de mota até ao liceu, sempre junto ao mar. Das 07h até à hora do almoço era a parte séria que intervalava com novas brincadeiras: tínhamos um avanço realmente grande em relação a Portugal. A Coca-cola e a Fanta proporcionava-nos concursos de ioiô no recreio, as motinhas Peugeot eram às dezenas, todas alinhadas e prontas a levar-nos dali para fora mal a campainha tocasse. A forma de vivermos era aberta, sem preconceitos ou tabus. Vivíamos e pronto!

O futuro? Era certo e muito objetivo: cirurgia-geral! Não tinha dúvidas. Vocação, ambição, vontade e, ainda por cima, boas médias. Aluna do Quadro de Honra. Mas a saúde pregou-me a partida e fiquei de cama dois anos inteiros com outros 5 de recuperação… Planos adiados ou mesmo alterados. Mas fica para a próxima reencarnação, garanto-vos!

Mãe de Yolanda Lobo

Quais são as recordações mais “saborosas” que tem de Moçambique?

Há imagens, cheiros e sons que estão na minha memória e no meu coração para sempre. O cheiro da terra molhada, o barulho dos trovões, a imagem de uma tempestade (praga) de gafanhotos ou dos ciclones, o sabor do caju fresco e das papaias, o calor nos pés do alcatrão a ferver, o som da chuva e o fumo que saía do chão quando ela chegava…

E depois outras coisas tão boas… os mimos da minha mãe, o som da sua máquina de costura, o cheiro dos seus cozinhados, as gargalhadas do meu pai, o meu cão que me seguia o dia todo… As bicicletas ao monte no tal “muro” do final do dia. Os passeios a medo pelo mato, as brincadeiras à chuva com a lama tão macia (matope) a enterrar-nos… As brincadeiras com os meus irmãos, as missas cantadas, os ensaios do coro à noite… Os acampamentos selvagens na mata da Penhalonga, as horas infinitas no ginásio para preparar os saraus, os meus professores, a sua solidariedade e ajuda e a dos amigos e da cidade toda quando adoeci e quase morri…

Sobrava tempo para tudo.

Sobravam horas para gastarmos como quiséssemos.

Que é feito dessas horas? Onde andam elas agora que tanta falta me fazem?

“ Vir para Lisboa foi muito duro e angustiante!”

Fale-nos dos seus avós paternos e maternos. (De onde eram, onde viviam, o que faziam profissionalmente… )

Do lado do meu pai conheci apenas a minha avó Guilú (Guilhermina). Senhora muito forte, independente, pouco dada a mimos e abraços de afeto… Com um temperamento difícil, tinha-nos a todos sob uma vigilância severa e crítica. Era uma avó diferente e nós, os três netos, não admitíamos que ela pisasse em ramo verde em relação à nossa mãe que, com todo o carinho, tratava dela. Foi o seu amparo diário mesmo quando cegou completamente.

Os meus avós maternos eram o oposto. Conheci-os em 1969, por altura do Inverno e do Natal. Tinha 12 anos. Viviam em Pangim (Goa) e eram a personificação do Amor. Desejosos de abraços, mimos, beijos, inventavam tudo para satisfazer os filhos (11) e netos (dezenas) que nesse ano se juntaram em Goa, vindos de todo o planeta, para assistir ao casamento da última filha. A minha avó Leucádia e o meu avô Manu (Manuel) andavam de mão dada o dia todo. O meu avô reclamava que a mulher já não lhe dava os mesmos mimos porque andava numa roda-viva a mimar os filhos, genros, noras, netos… Á noite, enquanto todos tocavam vários instrumentos e faziam uma serenata, ele agarrava-se à minha avó e dançava com ela, bem juntinho, olho no olho… Um exemplo de amor e afeto. A minha avó Leucádia, doméstica, era uma mulher cultíssima. De Portugal sabia tudo quanto à política e a economia. O meu avô era engenheiro civil. Falava-nos pouco do seu trabalho, do seu reconhecimento público enquanto profissional. Muito modesto, amante da justiça e da retidão, vivia sobretudo para a família e a sua mulher. Levava-lhe flores e elogiava-lhe o penteado ou o jardim que ela cuidava com amor, enaltecia os seus cozinhados e a forma como se vestia… Ele muito alto, ela muito baixa. Faziam o par perfeito!

Que importância tiveram os seus avós na sua vida?

Tudo o que vi e acompanhei da vida dos meus avós maternos foram um marco na minha vida enquanto mãe e agora vou senti-lo enquanto avó. Com os meus 12 anos apenas e durante uns 2 a 3 meses, assisti a um hino à família, ao amor, ao companheirismo, à cumplicidade… Aprendi como é importante mostrarmos o nosso afeto em casa, aos amigos, aos vizinhos. Como um sorriso pode mudar o dia de alguém, como a educação e as boas maneiras fazem a diferença.

Voltei a encontrar a minha avó Leucádia em Lisboa, nos conturbados anos pós 25 de Abril e fiquei impressionada pela sua atualização em relação à política de então. Sabia o nome de todos os políticos e fazia perguntas sobre cada um. Depois de umas semanas por aqui disse-nos simplesmente: “Preciso voltar para Goa porque o Manu deve estar a sentir muito a minha falta. Já chega!”.

Nunca mais a vi, mas sei de cor cada um dos seus traços, dos sorrisos de ambos e sobretudo do olhar ternurento para com todos.

Que características sente ter herdado dos seus avós?

A minha mãe e alguns tios diziam-me constantemente que eu tinha muito dos traços da avó Leucádia. O olhar, o riso… Eu aprimorei o que a minha mãe dela herdou e fui cultivando os valores que achei mais importantes para mim e para os meus filhos. O gosto que tenho pela minha casa, a sensibilidade e mesmo a criatividade julgo que vêm dali. As imagens que guardo deles são-me confortáveis e “casam” com a minha maneira de estar na vida, com aquilo que acho verdadeiramente importante.

Quais as memórias mais antigas que tem com os seus avós?

As memórias mais queridas são, efetivamente, dos avós maternos, apesar de viverem em Goa, a milhares de quilómetros de Moçambique. Os encontros foram poucos mas foram cheios de bons exemplos, ensinamentos, valores de amor e de justiça. Cada gesto ou palavra era uma lição de vida, de postura, de afeto infinito. Mesmo nas situações mais simples. Lembro-me, por exemplo, de ver a minha avó à noite (quando estivemos aquela temporada em Goa) a entrar nos nossos quartos pé-ante-pé… Por baixo do mosquiteiro eu espreitava a sua figura pequena que subia a um banco para esconder umas caixas no alto dos armários… Quando lhe perguntei o que fazia, explicou-me que em cada quarto estava a guardar os mimos para cada um usufruir durante a semana e que em segredo poderia desfrutar para evitar os “roubos” entre os primos… Por exemplo, no neto que tinha vindo da Suécia, guardava-lhe bananas e maçanicas (maçãs da Índia do tamanho de azeitonas) porque os netos que vinham de África tinham isso com a facilidade do clima e deviam deixar o primo ter essa exclusividade. Para mim e para a minha irmã guardava as “Teias de Aranha” (doces de côco como fios de uma teia) porque tinha percebido como tínhamos adorado aquele manjar e era uma receita dela… E por aí fora: dar amor, mas com justiça, partilhando o que podia.

Ao serão sentava-se ao piano sob o olhar apaixonado do meu avô. E os filhos, à sua volta, pegavam noutros instrumentos: violinos, violas, bandolins, guitarras… e todos juntos dedilhavam trechos de músicas clássicas ou típicas da Índia. E estas últimas cantadas. Um esplendor naqueles salões e terraços tropicais, cheios de plantas suspensas e velas acesas…

O papel dos seus avós na sua vida foi determinante para a se tornar na pessoa que é hoje?

O papel da minha mãe foi muito mais determinante pois que os avós não estavam presentes. Mas o que a mãe me contava da sua juventude e da sua educação foi um exemplo que segui e que sempre adotei. Cada dia que passa tento chegar-lhe(s) aos calcanhares, ser o ser humano que foram, aplicar no meu dia-a-dia a sua sabedoria, sensatez, bom senso.

O que aprendeu com os seus avós influenciou-a de algum modo a ser a mulher que é hoje? 

Sim, claro que sim, mas como disse, foi sobretudo a influência da minha mãe, espelho dos meus avós maternos, que me conduziu ao que sou hoje. Tento melhorar, chegar mais além todos os dias, mas sei que me falta ainda alcançar algumas das características extraordinárias da minha mãe. Tenho tantas saudades dela! Que falta me faz para me ajudar a ser melhor… Que falta me fazem os seus afagos, o seu olhar…

Os seus avós tiveram oportunidade de ver o sucesso em que se tornou?

A minha mãe escrevia-lhes periodicamente longas cartas contando tudo sobre nós. Sei que acompanhavam com muito interesse e orgulho todos os nossos sucessos e metas alcançadas. Vibravam com a nossa vida e pediam mais notícias o tempo todo. Lembro-me de ver a mãe mandar-lhes, inclusivamente, recortes de jornais e revistas onde eu aparecia com frequência na altura em que desfilava.

Quais foram os seus maiores desafios como neta?

Só convivi de perto com a minha avó paterna que, como referi, tinha um temperamento difícil e era muito senhora do seu nariz. Lembro-me que a minha maior preocupação era, juntamente com os meus irmãos, proteger e defender a minha mãe das suas investidas ou queixumes. Como neta mais nova tentava conciliar o respeito que lhe devia com o amor pela minha mãe e… era uma trabalheira!  Nem sempre corria bem.

Fale-nos da sua mudança de Moçambique para Lisboa. O que sentiu, como foi a adaptação?

A minha vinda para Portugal não foi planeada. Vim com o objetivo de fazer exames médicos com o Diretor de Cardiologia do Hospital de Santa Maria e bagagem para um mês de estadia. Mas entretanto os aparelhos que me ligavam à vida no Hospital da Beira danificaram-se e os de substituição tinham sido destruídos num ato terrorista um pouco antes da independência de Moçambique, pelo que os meus pais acharam que deveria prolongar a minha permanência por aqui, até porque este clima não húmido me estava a ajudar imenso na recuperação. E fiquei. Sem me despedir deles, dos amigos, da minha casa, dos meus bichos, da minha infância… Foi duríssimo e muito angustiante. Nada me era familiar por aqui, o modo de vida diferente, o clima, as pessoas, a falta de espaço e de árvores, do mar ao lado… Foi extremamente difícil e tive que ter apoio psicológico. Faltou-me o último beijo da minha mãe, o abraço do meu pai, faltou-me fechar aquela porta e mentalizar-me que deixava para trás o inimaginável. Sozinha, com 18 anos, muito magra e doente, desenraizada e com uma mala para um mês. Tinha feito aqui um tratamento semelhante quando tinha 15 anos mas nessa altura voltei para o meu canto, para os abraços de todos, para as minhas raízes. Agora senti-me perdida, sozinha, sem rumo ou futuro, sem os cheiros e os sons da minha vida…

Ainda tinha avós nessa altura? Vieram convosco?

Vim sozinha sem saber que vinha para sempre. Quase um ano depois veio a minha irmã e ficámos juntas.

Os meus pais acabaram por recomeçar a vida na Rodésia, pois a empresa onde o meu pai trabalhava era rodesiana. Só anos mais tarde vieram para cá. Perderam tudo novamente,e com a nossa ajuda e um cobertor que lhes foi dado no aeroporto, voltaram a começar do zero.

Foram os dissabores da guerra colonial, do modo como o fim da colonização foi feito e que amassou e amargou a vida de infinitas famílias.

Quais são as melhores recordações que tem com os seus avós, que recorda com os seus filhos?

Os meus filhos não conheceram qualquer dos meus avós. Apenas através dos meus relatos. Mas conhecem as histórias vividas por mim e pela minha mãe durante a sua infância em Goa. As suas recordações são com os meus pais que já nos deixaram. E com os avós paternos. As histórias divertidas são contadas vezes sem conta e relembrados os beijos, os cozinhados, as paródias nas férias e fins-de-semana… Ficou bem vincada uma marca de amor e de entrega.

Como são, ou foram os seus pais no papel de avós?

Foram muito, mesmo muito presentes. O meu pai no papel do avô brincalhão que os levava à escola e se divertia com eles nos passeios a pé ou com os programas preferidos de televisão. Era o “Vô Joaquim”.

A minha mãe (a “Vavá”) deixou, por seu lado, marcas profundas e boas: com as suas cartas de afeto para todos, aconselhava, ralhava, brincava… Fazia petiscos muito especiais, roupinhas para as bonecas e para eles, ensinava a bordar e a fazer crochet. Deixou receituários para todos, toalhas bordadas, histórias lindas e os corações cheios de um amor profundo, infinito, saudosos dos seus beijos, risos e carícias…

Todos os netos assistiram e acompanharam pesarosos os seus últimos anos minados pelo cancro. Foi doloroso, injusto, revoltante. Mas foi o seu extraordinário carácter que ficou na memória de todos nós, uma vida vivida para os outros e para eles.

“Abracei a Inês e choramos longos minutos.”

Em 2015 nasceu a sua 1ª neta, a Matilde. Descreva-nos o que sentiu quando soube que a sua filha Inês estava grávida.

Soube que a minha filha estava grávida quando a vi chegar a minha casa para jantar. Os olhos tinham um brilho especial, o sorriso estava ainda mais doce… Senti e adivinhei mais esta etapa como todas as outras ao longo da sua vida. Os amores, as aflições, os desgostos, as alegrias… Mas calei-me com medo de me precipitar e porque queria que fosse ela a dar-me a notícia. Passado um pouco colocam-me uma caixinha linda ao colo e lá dentro um par de botinhas brancas… Desatei num pranto de emoção, alegria, amor, incredulidade e muita, mas muita felicidade. Fiquei orgulhosa e feliz por saber que a minha filha Inês iria, também, passar por aquele maravilhoso milagre do parto, pela doçura da maternidade, pelo prazer infinito de ter o seu bebé no colo, beijar os seus pezinhos, vê-lo dormir, cheirá-lo, vê-lo sorrir só para ela…

Fiquei imensamente grata por este momento da minha vida.

Como viveu o tempo de gravidez da Inês? Viveu este tempo de forma serena ou com alguma ansiedade?

Serena, muito serena. A Inês é muito calma, muito sensata e cuidadosa com tudo. Por isso fui-lhe dando o apoio necessário mas mantendo-me, como sempre, um passinho atrás, para que os dois tivessem a sua privacidade e o prazer de gozarem cada momento a sós. O tempo de gravidez foi passado num ápice! Em menos de nada estava no fim, para minha total aflição pois mal tinha tido tempo de conciliar a minha vida profissional com os preparativos que queria ter feito com toda a serenidade. A decoração do quarto, do berço, as primeiras roupas e agasalhos. Já tinha separado todas as roupinhas da Inês que agora ficaram para a Matilde mas faltava-me os detalhes do quartinho que só agora acabei. As cortinas, o dossel, o fraldário, a cor das paredes, a barra de papel com ursinhos, o cadeirão para amamentar, tudo pensado ao pormenor.

É daquelas avós que faz botinhas e casaquinhos de lã?

Se sou! Já fiz gorros, botinhas, mantas e estou a fazer agora um macacão com o casaquinho. Adoro e enche-me de paz. Tenho um berço em minha casa só para ela, com todos os pormenores também. Em verga, antigo, em cinzento clarinho, da Formiga Vintage. Um amor!

Viaja imenso em trabalho. Conseguiu resistir às montras das lojas de artigos de bebé por onde foi passando?

Qual quê! Enche-me de prazer comprar para os meus filhos. Sempre assim foi. E quando passo e vejo alguma coisa útil e bonita é difícil resistir. Não comprei demasiado pois as roupinhas da Inês estavam em muito bom estado, mas juntei alguns mimos especiais.

A sua profissão obriga-a não só a viajar como a ter que se ausentar por períodos de tempo. Com o nascimento da sua neta, essas ausências vão começar a ser mais difíceis de se realizarem?

Cheguei a uma etapa da minha vida em que repenso, cada vez mais, as minhas prioridades e objetivos. Em Setembro de 2016 faço 60 anos e trabalho desde os 20 anos num ritmo sempre alucinante. Tenho tido a sorte de preencher lugares fora do comum. Uma vida cheia e boa. Agora falta-me o maior luxo de todos: Ter tempo! Tempo para mim, para um almoço com uma amiga, para gozar a natureza, para escrever, cozinhar, jardinar… tempo para gozar os últimos anos de vida útil com qualidade, alegria e muito amor. Por isso vou tentar abrandar e viver num ritmo menos acelerado. Impossível deixar de trabalhar porque tenho um espírito criativo e empreendedor. Mas preciso gerir melhor o meu tempo. E a Matilde, sim, veio acentuar ainda mais essa necessidade.

Descreva-nos a emoção que sentiu na primeira vez que viu a Matilde.

Emocionei-me tanto, mas tanto! Não apenas pela Matilde, mas sobretudo pela minha filha. Senti o dobro do amor por ela, um imenso orgulho, uma paixão por aquele ser a quem eu tinha dado à luz e que agora era mãe também. Abraçámo-nos a chorar durante longos minutos. Um choro de alma, de pele, de cumplicidade, de paixão. E só depois, acreditem, só depois desse abraço, olhei para a minha neta. E as lágrimas voltaram a cair, desta vez muito tranquilas, muito emotivas também, mas serenas. Estava ali a filha da minha filha e do meu genro querido. A minha neta. Uma responsabilidade nova para eles e para mim, enquanto avó. A responsabilidade de lhe deixar um legado de amor e memórias extraordinárias como a minha mãe deixou.

Como tem sido a experiência destas primeiras semanas no papel de avó?

Tem sido uma correria boa para terminar o quartinho que fiz com imenso amor e dedicação e que agora vejo concluído e cheio de detalhe. Como criativa adoro o facto de os pais me terem confiado essa tarefa. Como avó, sinto que foi tudo pensado em função do conforto dela e da procura de um ambiente muito acolhedor e cheio de paz. Tem sido muito bom assistir ao crescimento dos dois enquanto pais, à maturidade e bom senso com que ouvem os seus instintos. De vez em quando lá vou eu para estar presente no banhinho, ajudar no que é preciso, ficar com a Matilde para que possam jantar fora numa ocasião especial. É o reviver de tudo de uma forma diferente. Amachuco-a com beijos e abraços, emociono-me ao ver como a minha filha é querida e cuidadosa com ela, como me mostra que quer estar com a Matilde da mesma maneira como estive consigo. Trocamos mensagens e fotografias o tempo todo, a Inês partilha comigo os momentos especiais da bebé e por isso vou acompanhando de perto mas sempre com o tal passinho atrás, respeitando o espaço dos 3. Dos quatro, aliás, que o Rocky (um pequeno bulldog francês) também faz parte da família…

Os seus avós contavam-lhe histórias infantis? Que histórias pensa vir a contar à Matilde?

Não, não me contavam, mas eu vou fazer isso, tal como fiz com os meus filhos. Acho importante estimular-lhes a imaginação e a apetência para a leitura. A Inês e o meu filho António achavam muita graça às minhas histórias cheias de sons e quase sempre reinventadas por mim. Riam-se com os gestos e as caretas que eu fazia para dar mais vida a uma história. Por isso … em receita vencedora não se mexe!

Sempre a conhecemos como uma mulher bastante elegante e com muito bom gosto. Herdou essas características dos seus avós? Vai tentar passar essa educação à Matilde?

Herdei dos meus avós maternos, dos irmãos da minha mãe e dela também. Habituou-me a uma postura elegante na vida e na imagem, em respeito aos outros. E é isso que vou passar à Matilde. A elegância tem a ver com a nossa atitude e o bom gosto cultiva-se. Aprendi isso com a minha mãe e passei aos meus filhos. Lembro-me que até usei as mesmas advertências “Se fores capaz de estar à mesa num palácio, também vais conseguir estar à mesa numa tasca. Mas o contrário já não…“

A educação está em extinção e é responsabilidade de todos fazermos com que não seja considerada fora de moda, ultrapassada. Por uma questão de bom convívio entre todos, pelo respeito, pelo regresso urgente das boas maneiras no dia-a-dia de cada um, nas escolas, no trabalho, no atendimento em sítios públicos. É urgente que se retomem esses princípios dentro de cada família. E os avós são um papel fundamental na reposição dos valores, da educação, do requinte e das atitudes corretas para com os outros que nos rodeiam e com quem nos cruzamos todo o dia.

Tem muito bom gosto e dedica-se muito à área da decoração. O nascimento da Matilde despertou em si ainda mais o gosto pelas decorações dedicadas ao universo dos mais novos? A partir de agora ganhou uma nova fonte de inspiração?

E não é que é verdade? Tenho a cabeça cheia de projetos e esquiços! Apercebi-me nos últimos tempos que tem sido frequente a forma como me abordam para voltar a desenhar coleções, voltar à moda. E senti uma enorme falta no mercado de roupa confortável e bonita para as grávidas. Aliando isso à decoração dos quartos dos bebés, à criação de acessórios engraçados e úteis, penso que seria uma abordagem fantástica… Façam-me o desafio que eu agarro!

Foi a Yolanda que decorou o quanto da Matilde? Fale-nos sobre o quarto da Matilde.

O quarto da Matilde é doce e fresco, sem o cunho habitual de quarto para um bebé. É um quarto para uma menina pequenina, onde imperam os tons de alfazema. Os tecidos são em vários tons e de diversos padrões que se conjugam na perfeição. À cor principal juntei o rosa pastel, o azul claro, o verde água e o cinzento clarinho. O branco une isto tudo, bem como o crú do dossel e do cortinado debruado com uma franja feita com fios de todas estas cores, mas muito, muito suaves. No topo do dossel armei uma coroa de flores nas mesmas tonalidades, que também apliquei nos embrasses dos cortinados.

Mantive o cadeirão e o tapete do quartinho da Inês, um banco do quarto do pai agora forrado de outra maneira, uma mesa de trabalho da Inês como fraldário, forrado e ornamentado como o resto. Cestos para tudo guardarem feitos com o que sobrou dos tecidos. Criei uma barra de papel com diversos ursinhos bebés que, a meio da parede, separa dois tons de alfazema.

Está um docinho…

Se a Matilde quiser seguir as pisadas da avó materna vai incentivá-la a ser modelo? Atriz? Decoradora?

Vou incentivar a Matilde a ser feliz e a aproveitar tudo o que a vida lhe der. Que siga os seus instintos e que seja muito boa no que fizer. Se por acaso o caminho for por aí, então estarei disponível para a ajudar e a encaminhar. Mas daqui a 20 anos já não deve querer ouvir a Vovó que já nem do próprio nome se deve lembrar… (riso)! Por isso, trate de ser feliz e de viver o presente!

Que outros projetos gostaria de vir a fazer? Que sonhos gostaria de realizar? Qual o seu “projeto de vida”?

Gostava de ter a oportunidade de abraçar novos desafios, sim. Sou irrequieta e gosto de estar sempre a aprender. Mas onde me sinto segura e útil é na Imagem de Empresas, na Criação de Ambientes e de peças diferentes (mobiliário, roupa, acessórios em pele, cerâmica e vidro, joalharia, interiores). A ausência de rotina apaixona-me, a coordenação de equipas também, a criatividade é o ar que respiro. Não está em causa ter um espaço meu, mas sim coleções minhas nestas vertentes, ou desenhadas e concebidas por mim para outras marcas. Aí sinto-me como peixe na água. Tratar da Imagem de um Hotel, de um restaurante ou de uma loja seria ouro sobre azul. Poderia colocar ao rubro todo o meu lado criativo e inovador, o meu gosto e experiência. Há quase 40 anos que me mexo nessas áreas e tenho evoluído imenso à custa das inúmeras viagens, visitas a feiras, colaboração com empresas diversas. Não gosto de me sentir desaproveitada. Preciso baixar o ritmo, como disse há pouco, mas não baixar os braços.

Os Retratos Contados apresentam-se como um projeto único e diferenciador, uma vez que nos focamos numa área diferente do habitual. O nosso objetivo é falar das ligações entre avós e netos. A importância dos avós na vida dos netos e vice-versa. O que acha deste projeto?

Acho-o encantador e reforça tudo aquilo que disse sobre o facto de termos que repor, de forma urgente, os valores mais preciosos da família, da educação, das boas maneiras, das boas tradições. E quem melhor para isso do que os avós?

Através da nossa página queremos ainda falar de envelhecimento ativo, do abandono dos idosos, dar a conhecer atividades para serem feitas pelos mais velhos, ou para os mais netos fazerem com os avós… Quando olha para o nosso país, como vê a população mais velha?

Fui pioneira num projeto chamado “Barrigas de Amor” que teve como objetivo colocar na Agenda do Governo o problema da baixa natalidade em Portugal e do aumento natural da longevidade. O país está dramaticamente envelhecido e sem recursos para manter condignamente os nossos idosos. Foram 5 anos em que esse assunto foi falado e tratado no “Barrigas de Amor”, tomadas medidas adicionais pelo Estado mas depois, infelizmente, retiradas. É preocupante ver como tanta gente envelhece de forma pouco digna, sem o apoio e o carinho dos familiares. Por outro lado, vê-se também um grupo de gente “madura” que se recusa a envelhecer de espírito e se quer manter ativo, cheio de boa energia, alegria de viver e a investir nos seus dias com viagens, passeios, desporto, vida cultural e social. Com este grupo não temos que nos preocupar: são os novos “velhos”, onde também me situo.

Com o outro grupo sim, temos que fazer alguma coisa para que a sua vida não se torne apenas uma fila de espera. Há atividades que podem ser reinventadas, tarefas úteis para todos, integração em grupos de trabalho que façam sentir a utilidade das suas experiências de vida. Quanto mais avançamos na idade, mais experiência temos e esse bem é essencial a todos os outros que vêm atrás. A perda de faculdades pode limitar a aplicação dessa experiência mas não deveria ser um rótulo assumido.

Envelhecer não é fácil. Eu estou a passar por essa experiência em que somos considerados experientes, sim, mas onde os mais novos acabam por nos fazer sentir que é uma experiência “ultrapassada”, desatualizada. A não aproveitar. E é a nossa sabedoria e bom senso que nos leva a observar e deixar fluir a vida de todos os que nos rodeiam, esperando sermos lembrados, amados e desejados. Aprendemos a atuar na altura certa, no momento mais propício, sem nos fazermos sentir.

Por outro lado, há o desgaste físico. A ausência do corpo que conhecíamos e que agora não nos obedece. Surgem as dores constantes, a falta de visão e audição, a memória que nos trai. É humilhante, difícil e doloroso assistir ao desgaste. Mas há outras coisas boas em que devemos apostar. O facto de sabermos separar o “trigo do joio”, de só procurarmos o que nos dá realmente prazer, o de não fazermos mais “fretes” intermináveis ou favores difíceis de engolir. A vida torna-se mais simples e as coisas mesmo simples têm um valor grandioso. Com muito menos somos felizes. Relativizamos tudo, levamos a vida menos a sério. Rimo-nos mais, sofremos menos. Gostamos de quem gosta de nós. A opinião dos outros a nosso respeito já não conta. Estamos libertos! Libertos para amar a dobrar, sorrir a valer e abraçar com muito amor o que a vida nos dá de presente, todos os dias.

Eu sou feliz. Muito feliz. Tenho filhos doces que estão sempre presentes, um genro querido que adoro como meu filho e outros filhos do coração de que gosto e mimo como meus, que me preocupam e me fazem vibrar com o percurso das suas vidas…

Tenho tudo o que preciso e me faz viver com alegria, prazer e amor. Um companheiro de vida magnífico que me completa e estimula a ser melhor, uma casa que adoro e que me envolve em magia todos os dias, os meus bichos, o meu jardim, o meu trabalho e os meus amigos.

Às coisas menos boas que me atormentam dedico um par de horas por dia e resolvo-as rapidinho. Pois que a vida merece ser vivida como uma festa.

O envelhecimento também nos traz a perceção de que a vida é demasiado rápida. Sobretudo, agora, que vejo todas as semanas partir pessoas com quem me cruzei na vida. Que amei, que respeitei e que não estão mais junto a mim…

A vida é mesmo para ser celebrada. E a minha doce Matilde vai ter o melhor de mim!

Espreitem mais sobre o que mudou da vida da Yolanda Lobo depois de ser avó aqui: Retratos Contados da Yolanda Lobo no Faz Sentido

Salvador & Lobo é um atelier de arquitectura e design de interiores em Portugal.
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