“O BAR DO RICK “

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“O BAR DO RICK”

Crónica publicada no Jornal de Mafra

Humphrey-Bogart-in-Casablanca

 

O BAR DO RICK

ALICE VIEIRA

Quando eu era nova lembro-me de ter lido um romance do Augusto Abelaira em que uma das personagens, homem sem tempo para lides caseiras e com muitas outras coisas em que pensar, jantava sempre dois ovos estrelados, comidos diretamente da frigideira.

De cada vez que estrelo ovos, lembro-me sempre disso, como se fosse uma cena transcendente e extraordinária, e fico com uma vontade doida de reler o livro.

Mas a verdade é que há coisas assim, meio tontas às vezes, que estão sempre a vir à nossa cabeça, sem qualquer razão aparente.

Lugares imaginados de que lemos tão rigorosas descrições em livros que acreditamos que existem mesmo a sério, e prometemos visitar assim que pudermos.

Frases perfeitamente banais que recordamos de alguns filmes.  (E algumas nunca foram ditas…)

Cantos de ruas sem nada que as distinga de outras, mas que ficam na nossa memória. (Havia uma rua no Bairro Alto, perto do antigo jornal “Diário de Lisboa”, que cheirava a açúcar queimado. É sempre esse cheiro que me entra pelo nariz quando lá passo ainda hoje – e ela não cheira a nada, segundo juram as outras pessoas.)

Há muitos anos ia eu numa excursão a Marrocos. Fazia um calor insuportável, era Agosto. Ninguém, no seu juízo perfeito, vai a Marrocos em Agosto. (D. Sebastião foi, e o resultado viu-se) mas eu fui, e aguentei aquele forno com a ideia de, no fim da viagem – assim estava no programa – acabarmos em Casablanca.

Para mim, e para muitos da minha geração, “Casablanca” foi e continua a ser o filme da nossa vida.

Porque se estava em guerra e aquele era um filme contra a guerra, e ganhavam os bons.

Porque Lisboa aparecia como um destino ansiado por todos: o lugar onde se podia apanhar um avião para a liberdade.

Porque o Humphrey Bogart, que se chamava Rick e tinha um bar, acendia cigarros a olhar para a Ingrid Bergman, que se chamava Ilse, e murmurava em voz rouca “here’s looking at you, kid”, qualquer coisa como “estou a olhar para ti, miúda”, e recordava Paris como lugar único de amores eternos.

E porque Sam tocava ao piano “As Time Goes By”, no bar do Rick, e quando entravam os alemães cantava-se a “Marselhesa” e nós nunca tínhamos visto nada assim, e ficávamos com vontade de fazer muitas coisas heroicas e de nunca deixar que os maus vencessem.

Durante anos e anos tinha sonhado ir a Casablanca ver o bar do Rick. Sabia exatamente onde ficava, tinha na memória as suas paredes brancas, o portão de ferro forjado, os velhos sentados cá fora.

Assim que a excursão chegou à cidade, não pensei noutra coisa.

“Leva-me ao Bar do Rick!” – pedi ao guia, logo na primeira noite em Casablanca.

Nunca esquecerei a gargalhada que lhe ouvi.

“Outra!…” – repetia ele, sem parar de rir.

Quando finalmente se recompôs, informou-me que todos as estrangeiras, assim que chegavam a Casablanca, vinham doidas para se enfiar no bar do Rick, possivelmente à espera do fantasma do Humphrey Bogart a acender cigarros sem olhar para eles, a sonhar com um avião para Lisboa, e para sempre preso à eternidade de um amor em Paris.

“O pior…”, explicou ele, “o pior… o pior é que não há nenhum bar do Rick em Casablanca! Nem nunca houve!”

“Como não há! Claro que há! “, insistia eu. “Sei perfeitamente onde é, acho mesmo que até passámos por ele no autocarro, quando chegámos esta tarde!”

Mas a verdade, a dura verdade, é que não havia mesmo.

Tudo tinha sido uma reconstituição. Tudo tinha sido filmado nos estúdios americanos, onde o filme era realizado.

Acho que nunca me recompus da desilusão. Pior: acho mesmo, à distância de mais de quarenta anos, que o guia me enganou escandalosamente, e que, lá bem pelo meio das sinuosas ruas de Casablanca, o bar do Rick continua ainda à minha espera, com os acordes da Marselhesa a darem-nos ânimo para fazermos muitas coisas heróicas e para que os maus não vençam. Nunca.

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A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.

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