“O Catitinha”
Crónica publicada no Jornal de Mafra
O CATITINHA
ALICE VIEIRA
“Tu agora pastas?”
Lembro-me do olhar admirado da minha amiga Margarida quando um dia me viu apanhar umas ervas amarelas e levá-las à boca.
“São azedas”, disse-lhe. ”Foi o Catitinha que me ensinou”, acrescentei.
E de repente veio-me à memória esse tempo tão distante da minha infância, em que um velho enorme, de barbas e sempre vestido de preto, me ia buscar a casa, e me levava pela mão a passear ao Parque Eduardo VII, e me ensinava o nome das plantas, e me dizia as que se podiam comer.
Muitos daqueles que hoje andam pelos setenta anos certamente ouviram falar do Catitinha, sempre rodeado de crianças, e de apito na boca a mandar parar o trânsito.
Eu teria uns 4 ou 5 anos quando ele entrou na minha vida.
Sem avisar, à uma hora de uma qualquer tarde batia à nossa porta, a criada abria e dizia “minha senhora, é o Sr.Catitinha, com o ar solene de quem anunciava um ministro, e ele entrava como se a casa lhe pertencesse.
Às vezes passavam-se semanas em que ele não aparecia.
Depois vinha o verão, íamos para Cascais –e ele lá estava. E todas as crianças corriam para ele.
Em casa, eu ouvia contar estranhas histórias sobre o Catitinha.
Que tinha enlouquecido quando a filha única morrera atropelada e que era por isso que trazia sempre o apito no bolso e que apitava freneticamente de cada vez que atravessava a rua com as crianças ao lado, para que todos os carros parassem e não houvesse perigo.
Às vezes ouvia também dizer que ele se passeava pelos areais da Póvoa de Varzim e de Vila do Conde—e então eu pensava que ele era assim uma espécie de Deus, que estava em toda a parte.
Depois deixou de aparecer—e eu cresci.
Ou eu cresci – e ele deixou de aparecer.
Não sei estabelecer aqui a ordem dos acontecimentos.
Deve ter morrido enquanto eu crescia. E eu não dei por nada.
Com o andar dos tempos, fui lendo aqui e ali, algumas notícias sobre ele, todas diferentes.
Um dia o Ruy Belo disse-me que tinha escrito um poema em que o Catitinha entrava.
— Não acredito! —disse eu.
–Um dia mostro-te – disse ele.
Nunca mostrou. Tínhamos coisas muito mais importantes para fazer.
Mas há tempos, folheando um dos seus livros, salta-me, pelo meio de um poema:
“era nas férias havia o mar e íamos à missa
ouvíamos a campainha e o padre voltava-se para nós
–orate fratres – ou íamos ao cemitério apesar do Catitinha “
Pelos vistos, para alguns o Catitinha era nome que assustava, o louco, o que andava com as crianças, cuidado…
Há uns anos foi publicado um livro para crianças, por Manuela Costa Ribeiro, e aí pela primeira vez soube o nome dele, a sua data de nascimento – 23 de Novembro de 1880—e a profissão que exercera antes de ter enlouquecido: o Catitinha era—imagine-se—formado em Direito , e exercia a profissão de notário.
E leio:
“O Catitinha é do mar. Qualquer que seja o mar, o mar é seu. Para norte e para sul. O da Póvoa. O de Espinho. Aveiro. Caminha. Leça.”
E aí, criança da cidade, eu contraponho:
“O Catitinha é de Lisboa. Do Parque Eduardo VII. A Av. Fontes Pereira de Melo era toda dele. E o Marquês de Pombal. E as Avenidas Novas.”
E se querem falar em praias, então Cascais. A Praia da Conceição. E a da Duquesa. Um dia, as crianças juntaram-se todas à sua volta no areal, e o pai de uma delas tirou a fotografia.
Nesse dia eu estava com anginas e fiquei em casa. E chorei muito quando me disseram que todos tinham ficado no retrato — menos eu.
Tempos depois descobri o retrato no Museu do Brinquedo, em Sintra. E ainda tive vontade de chorar por não estar lá.
À distância destes anos todos, confesso que ainda não entendo como é que a minha tia, que dominava todos com mão de ferro, e não me autorizava sequer a brincar com outras crianças nem a sair do casarão das avenidas novas para ir à escola—me largava nas mãos daquele velho, sem saber onde íamos nem quando voltávamos. É das poucas coisas que lhe agradecerei sempre.
Não sei o que é que eu teria sido durante esses primeiros anos da minha infância complicada e de poucos afectos, se o Catitinha não tivesse existido.
E não me levasse ao Parque Eduardo VII.
E não me tivesse ensinado o nome das árvores.
E não me tivesse mostrado o que são azedas e como é bom o seu sumo.
Só sei que teria sido, seguramente, uma criança muito mais infeliz.
A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.
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