“HEMINGWAY EM TORONTO”

“HEMINGWAY EM TORONTO”

Crónica publicada no Jornal de Mafra

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HEMINGWAY EM TORONTO

ALICE VIEIRA

 

Acabo de chegar de Toronto, a mala ainda por desfazer, as horas de sono ainda trocadas (e, para ajudar, havia amigos que me ligavam às 5 da manhã, julgando-me nas 10 da manhã de Lisboa!) mas há trabalho atrasado, reuniões onde é preciso estar—e isso é sempre prioritário.

Mas durante as sete horas de voo houve tempo para pôr as ideias em ordem, e pensar noutras coisas para lá das não sei quantas idas a escolas e bibliotecas.

Esta foi a minha quarta ida a Toronto. E em todas elas me aparece sempre o meu amigo Carlos Sousa para me fazer—como ele diz—algumas surpresas. Surpresas significa aqui a ida a lugares que a maior parte das pessoas não conhece, enfiados em ruas que não são as grandes avenidas. Foi assim que um dia fui parar diante de uma vivenda minúscula, escondida entre prédios de muitos andares e parques de estacionamento, com o Carlos a dar-me uma lição extraordinária sobre o Marshall McLuhan que ali sempre tinha vivido e partilhado a sua “aldeia global” com os seus alunos. E também tive direito a fotografia no lugar do laboratório onde foi descoberta a insulina. Etc, etc,etc…

Desta vez o Carlos tinha outra surpresa escondida na manga: depois de atravessarmos ruas e parques e mais ruas e parques, manda-me sair do carro, leva-me por entre gruas e máquinas de uma estrada em obras e, apontando para um prédio diz: ”foi aqui que o Hemingway se tornou escritor.”

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Nunca me tinha passado pela cabeça associar o nome de Hemingway à cidade de Toronto. Mas, no prédio, uma placa em bronze tira as dúvidas a quem as pudesse ter: tinha sido ali, exactamente ali, que Hemingway, em 1920, tinha escrito os seus primeiros textos, publicados no jornal “Star”. Tudo porque, enquanto convalescia do seu ferimento de guerra junto ao lago Michigan, conhecera um casal de canadianos em férias que o convidaram para preceptor do seu filho mais novo. O miúdo tinha grandes deficiências físicas e a mãe imaginou que Hemingway o poderia ajudar a encarar a vida com mais optimismo.

Embora a paciência de Hemingway para com o rapaz não fosse muita, ainda por lá ficou algum tempo, pois a mãe—que o tinha ouvido falar sobre a sua experiência de guerra num encontro num clube local feminino no Michigan –convenceu o marido a arranjar-lhe trabalho no jornal” The Star”.

E pronto. Foi então aí que começou tudo.

Daí depois os voos para outras direcções, para outros destinos, para outras linguagens, que iriam torná-lo no grande escritor que hoje lemos .

O que é engraçado é que Hemingway sempre odiou Toronto. Há quem diga que esse ódio era o resultado de três coisas para ele insuportáveis: gente sisuda que o aborrecia de morte; pouco álcool à sua disposição; e protestantes por toda a parte.

Talvez se possa juntar a isto o facto de ser miseravelmente pago, um “penny” por palavra, embora, verdade seja dita, os textos também não merecessem muito mais: quem lê hoje essas pequenas crónicas, que ele assinava no “Star”nos anos 20, dificilmente acredita  que é o mesmo que escreveu as extraordinárias “short stories” e romances que hoje conhecemos.

Se não fosse a sua obra posterior, decerto que nenhuma placa de bronze assinalava a sua passagem por Toronto. A cidade onde—segundo ele escrevia e repetia para quem o ouvia— “só havia pessoas que eram uma porcaria”. (Bom, “porcaria” não foi bem o termo que ele usou, mas isto é um jornal decente…)

E mesmo assim a cidade orgulha-se dele.

E põe placas de bronze no lugar onde ele escreveu textos a insultá-la.

Mas isto acho que acontece a toda a gente.

Nós também nos babamos sempre muito quando recordamos Lord Byron extasiado em Sintra, a chamar-lhe “um Eden glorioso”…

E estamos sempre a citá-lo.

Claro que não citamos nunca o resto da estrofe, com ele a exclamar como Sintra estava desprezada, e como era quase um crime tanta beleza desperdiçada nas mãos de gente como os portugueses ( que ele desprezava, e com quem se gabava de ter aprendido muitos palavrões…)

Mas é assim. O que se quer—o que todos querem– é que gente famosa fale de nós.

E haverá sempre placas de bronze para o recordar.

 

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A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.

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