“Noite de Santo António acaba com um cadáver em bairro popular de Lisboa”

45º Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

A idade tem destas coisas. Chegamos a uma dada altura e começamos a fazer balanço. E quer melhor sítio para tal, que defronte do mar revolto da Ericeira?

Sentado com os pés enterrados na areia, sentindo os últimos raios quentes do Verão, pus-me a deambular pelo passado.

Não acredito nos que dizem que fariam tudo igual outra vez. Tenho sempre a sensação de que, ou mentem ou são burros. Sim porque, tal como dizia a minha avó (se calhar não dizia mas pronto), só os burros não aprendem com os erros. E não me venham dizer que há alguém que nunca os cometeu! Eu então foi um fartote! Mas, como diz a canção, no balanço de perdas e danos, embora tenha tido muitos desenganos, acho que o saldo é positivo.

Das poucas coisas que ainda hoje me atanazam o espirito, está aquela noite de Santo António, haverá para aí uma década. Foi a última vez que o vi.

Subia eu a rua, quando já perto de casa um vulto me envolveu nos braços.

Primeiro pensei que era mais um folião bêbado de Santo António, embora a noite fosse ainda jovem para tamanha bezana.

Afastei-o e foi aí que o reconheci: o homem da monosobrancelha.

Estava velho, magro, mas mesmo assim não havia dúvida: Era ele!

Eu que o fazia morto e enterrado, tive um calafrio, logo seguido dum acesso de raiva que em mim não é propriamente usual. Pelo menos assim, sem qualquer razão.

– Que andas por aqui a fazer desgraçado? Tentei empurrá-lo mas ele agarrava-se a mim como um náufrago. Parecia querer falar mas não lhe saia um som.

-Larga-me estupor.

Embora velho, o gajo tinha uma força de mil diabos. Com os olhos exorbitados, abrindo a boca como um peixe for a de água  puxou-me para uma verdadeira dança de S. Vito que durou alguns segundos .

Entre puxões e empurrões,  varremos a rua dos caixotes de lixo com enorme alarido.

O homem agarrara-se a mim como uma lapa, vá lá saber-se porquê.

Em bom rigor, eu conhecia-o mas ele a mim certamente não. Tenho uma daquelas caras iguais a centenas de outras anónimas, sem qualquer sinal especial. Já ele…

Por fim consegui libertar-me com um empurrão mais forte.  Desequilibrando-se caiu de costas no degrau da entrada do prédio e ali ficou sem dar acordo.

Afastei-me como se se tratasse dum leproso imundo e subi a rua sem olhar para trás . Ainda ouvi abrir-se uma janela num andar qualquer mas não me voltei.

Só no dia seguinte lembrei-me do som de melancia a quebrar que se seguira à queda do patife. Esse som e essa dúvida ainda hoje me perseguem.

Até porque na verdade não foi essa a última vez que o vi. Mas então já muitos o rodeavam e a polícia mandava dispersar que ali já nada mais havia a fazer.

Foi a primeira vez que escrevi duas linhas de fait-divers no jornal:

“ Noite de Santo António acaba com um cadáver em  bairro popular de Lisboa”

Embora o soubesse, não lhe dei nome.  Anónimo era mais fácil esquecê-lo .

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