“Ah, isto agora é outra coisa!”

44º Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Ah, isto agora é outra coisa!

Claro que  ainda está tudo muito complicado! Mas o que eu quero dizer é que,  para mim, poder sair de casa e andar pelas ruas já faz toda a diferença. Não poder beijocar e abraçar os meus netos é ainda o que me custa mais. Mas, pelo menos, já os posso ver, com máscara, claro, e sempre a uma razoável distância. Mas estão ao pé de mim e não cá em baixo na rua e eu na janela.

Dou umas voltas, vou ao supermercado, ao café com o meu Isidoro … Acho que voltei à vida!

Mas o engraçado é que me parece que isso aconteceu a toda a gente.

O café até tem esplanada cá fora, para poder ter mais clientes, o distanciamento é obrigatório. O sr. Luís contou-me que tinha pedido autorização à Junta de Freguesia e a presidente dissera logo que sim, nem lhe pedira papelada nem nada. E acho que autoriza todos os cafés que lhe pedem.

Grande mulher. Votei nela e hei-de votar outra vez nas próximas eleições, se ela se candidatar.

E é bom encontrar os nossos vizinhos no café. Gente aqui da rua, de quem nem sequer sabíamos o nome, e agora sorrimos todos uns para os outros, e dizemos “Como está?, e às vezes até conversamos. Eu, que tanto gostava que as pessoas fossem a minha casa para falarmos todos das vidas que tínhamos tido, agora faço tudo isso à vontade.

Se este mundo agora é outro, nós também temos de ser outros. E somos!

Há dias estava eu e o meu Isidoro a tomar umas cervejas no café (é a única bebida alcoólica de que gosto), e os meus netos a  comerem uma torrada na mesa ao lado quando ouço um deles:

“Avó, na pneumónica também não foi assim?”

O Dinis, claro. O génio da família.

“Sabes, a avó ainda não era nascida nessa altura..”

“Ah não???”

Haviam de ver o ar de espanto dele. O Isidoro até levantou mais o jornal que estava a ler para não se ver que tinha desatado a rir. A gente em casa conversa…

“Não, filho, isso já foi há mais de cem anos, mas acho que também morreu muita gente e que  foi um bocado parecida com o Covid. Mas não sei muito mais.”

Foi então que ela se levantou lá do fundo da esplanada e veio ter connosco.

“Queres saber mais? O meu amigo já se vai embora e eu tenho lugar na minha mesa. Se quiseres ir para lá eu conto-te tudo.”

“Já tinhas nascido nessa altura?”—pergunta o Dinis, que pode ser um génio em muitas coisas mas a calcular a idade das pessoas nem por isso.

Ela riu-se e o meu Isidoro aproveitou, levantou-se e disse-lhe:

”Se o seu amigo já lá não está ,a menina Rosa pode ficar aqui no meu lugar, que eu tenho de ir ao multibanco e depois vou para casa.

Claro. Os 500 euritos da praxe. E eu a fingir-me de parva.

A Rosa está uma simpatia. Nem parece a mesma. Se calhar é do tal amigo que nestes últimos tempos anda muito com ela…Se calhar é namorado… Agora  ninguém se pode beijar, de maneira que não sei. Também isso não me diz respeito, a vida é dela, que já tem idade suficiente para fazer aquilo que  quer.

Lá se sentou ao pé de nós e foi contando muitas coisas ao Diniz.

“ Então a pneumónica aconteceu há muitos, muitos anos, se calhar no tempo dos teus bisavós, em 1918. Também houve em vários países, como agora, e cá em Portugal morreu muita gente. Dizem que morreram 60 mil pessoas, mas devem ter sido muito mais, porque nessa altura não tínhamos as informações que temos hoje. E repara que Portugal, nessa altura, tinha muito menos gente do que tem hoje… Nessa altura Portugal tinha cerca de seis milhões de habitantes e hoje tem praticamente dez milhões. É quase o dobro.. “

Reparei que mais zero menos zero não estava a fazer qualquer diferença para o Dinis, e resolvi intervir para amenizar a conversa.
“Obrigada, menina Rosa, acho que já chega para o que ele quer saber…

Ela fez que não ouviu e continuou:

“E sabes uma coisa engraçada? É que também naquela altura havia pessoas que diziam que aquilo não era importante, houve mesmo um presidente da República, muito antigo, chamado Sidónio Pais, que foi viajar pelo país todo, em contacto com as pessoas só para mostrar que a ele nada lhe acontecia…”

E logo a voz do Dinis:

“Como o Bolsonaro”

Foi a vez de a Rosa se rir,

“Afinal também sabes muitas coisas…”

“Foi o meu pai que me ensinou”.

Fiquei a saber que o Vasco falava de política com os meus netos. Subiu na minha consideração.

“Ó menina Rosa…”

“Chame-me só Rosa, D. Perpétua…”

 “Está bem, se me tirar o Dona… Não quer beber nada? Eu e o meu Isidoro bebemos sempre uma cerveja… E acho que não tomou nada na mesa em que estava com o seu namorado…

“Namorado??? Quem, o Zé Paulo??  Eu não tenho namorado… Acho que já não tenho paciência… O Zé Paulo é meu colega de escola, e eu peço-lhe sempre ajuda agora com o  tele-ensino e as regras que é preciso ter com os miúdos… Tem sido um tormento…”

E pronto, lá ficámos a tagarelar, eu a falar-lhe da minha vida,  o Sr. Luís trouxe mais uma cerveja e mais um prato de amendoins, e que bem que me senti. Como estas pequenas coisas a que não dávamos importância nenhuma nos podem parecer agora extraordinárias.

Mas já era tempo de voltar para casa. Estendo-lhe o prato de amendoins

“Acabe, que são muito bons, mas acho que já comi demais…”

E foi então que a Rosa, ao olhar para os amendoins, desatou a rir, a rir, que parecia doida… Eu só lhe perguntava o que tinha acontecido e ela só abanava a cabeça, conseguia murmurar “nada, nada”, mas não parava de rir. Até que lá se conseguiu endireitar e dizer:

 “Óptimos, os amendoins estão óptimos, adoro amendoins, ninguém sabe o que os amendoins podem fazer a uma pessoa….”

Levantou-se, pegou na mala e acrescentou:

“É uma história muito antiga. Um destes dias, quem sabe, até sou capaz de lha contar “

E lá se afastou, a trincar uma mão cheia de amendoins, com uma força como se estivesse a trincar carne crua.

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