“Foi por causa de um livro que decidimos chamar Teresa à nossa primeira filha”

46º Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Pronto, isto tinha de acontecer. As pessoas não tomam cuidado e agora voltámos a ter mais infetados e todos na região de Lisboa. De que é que estávamos à espera ? Quando vejo pessoas na rua sem máscaras, ou com as máscaras penduradas no braço ou por baixo do queixo, só não lhes vou ao focinho porque ninguém consegue ir ao focinho de um tipo mantendo 2 metros de distanciamento—mas vontade não me falta.

E quando lhes digo , civilizadamente, para colocarem a máscara e eles vêm com aquela conversa do  “eles” ? “Eles sabem lá…” “Eu não faço o que eles mandam!” Mas quem são eles?

Eu e a minha Perpétua temos imensa vontade de beijar e abraçar os nossos netos, e a Luísa, que veio cá uns dias de férias com um namorado que arranjou por lá, ou de ir a casa de amigos—mas não o fazemos.  É perigoso. Mas uns amigos nossos há dias receberam o filho que vive em França e vá de o abraçarem e beijarem como se não houvesse amanhã, e todos os domingos vão jantar a casa de amigos- que não sabem por onde andaram nem com quem estiveram.

Mas pronto, é lá com eles.

Claro que já vamos saindo, tentando fazer a nossa vida —já ouvi chamar a isto o novo-normal –mas sempre dentro das regras que são impostas.

Por que não pegam as pessoas num livrito e passam algum tempo em casa a ler, ou nas esplanadas que têm o distanciamento necessário (como aqui a do Sr. Luís)? Há tantos livros bons… Fazia-lhes muito bem.

Eu só tenho a 4ª classe. Naquele tempo os pais mandavam logo os filhos trabalhar para a cidade, porque o dinheiro era preciso em  casa. Lembro-me muito bem de o meu professor ir lá a nossa casa e dizer “ó Sr. Gonçalves, o seu Isidoro é um miúdo tão esperto…Mande-o estudar…” Mas o meu pai respondia sempre, “tem a 4ª classe, já lhe chega muito bem, há por aqui muitos que nem isso têm…”

Claro que quando cheguei a Lisboa eu podia ter estudado à noite, como muitos fizeram. Mas tinha 10 anos e chegava a casa tão cansado…

Mas depois encontrei a minha Perpétua , que gostava muito de ler, e foi quem me salvou.

Ao princípio não havia muito dinheiro para livros lá em casa. Então íamos às carrinhas da Biblioteca Gulbenkian (havia uma que parava mesmo ao pé do meu trabalho) e escolhíamos os livros que queríamos ler e trazíamos para casa. No fim de os termos lido íamos devolvê-los e trazíamos mais.

Acho que essas bibliotecas já acabaram há muito tempo. Tenho muita pena, mas dizem que já não são precisas. O que eu duvido muito, mas pronto, eles lá sabem. (Olhem, já caí também na palermice do “eles”…)

Os senhores das carrinhas falavam muito connosco, iam sabendo a nossa vida e depois davam-nos muitos conselhos, “leia este, que vai gostar”—e acertavam quase sempre.

Nunca me esqueci de um que eles me deram para ler. Gostei tanto, tanto, e a minha Perpétua chorou tanto, tanto a lê-lo, que depois até o comprámos, e está ai na estante—agora ao pé de muitos outros.

Chamava-se “Amor de Perdição” e quem o tinha escrito era o Camilo Castelo Branco.

Segundo nos contaram os senhores da carrinha, o Camilo nunca tinha dinheiro para nada, e às vezes ia parar à  cadeia, e escreveu esse livro em 15 dias  para poder pagar umas contas… Mais uma razão para o levarmos e o lermos .

E não sei quantas vezes o li… A Teresa e o Simão… Um casal tão apaixonado e tão desgraçado… As famílias todas contra eles… A querem que se casassem com outros…

E depois suicidaram-se todos.

Nessa altura em que lemos o livro, até apareceu na rádio uma cantiga que a minha Perpétua estava sempre a cantar

“Não há amor maior

maior paixão

do que o amor de Teresa

por Simão…

Mas para a Índia degredado

 lá foi o pobre Simão

Triste fim, triste acabar

de um amor de perdição

Não digam a ninguém, mas foi por causa desse livro que eu e a minha Perpétua decidimos chamar Teresa à nossa primeira filha .

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