“Não costumo receber muitos telefonemas de gente da Arruda. “

34ª Capítulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Não costumo receber muitos telefonemas de gente da Arruda. Da minha família já não há lá ninguém, e os amigos que ainda por lá restam, com a minha vinda para Lisboa, perdi-os de vista.  Por isso admirei-me quando reconheci a minha amiga Isaura no telemóvel.

Pareceu-me sentir um leve riso na sua voz, mas mesmo assim assegurei-me de que não tinha morrido ninguém.

–Não, não…Era só para te falar de um negócio que talvez te interesse

Aí o riso dela rebentou mesmo, e a gargalhada da Isaura era inconfundível…

–Um negócio?? Desembucha, mulher.

Mais outra gargalhada.

— Ainda te lembras do Sr.Acácio ?

Foi a minha vez de rir.

–Ó Isaura…Então não me havia de lembrar… Mas ele não morreu já ?

–Morreu. Mas tem filhos. E os filhos acho que se estão marimbando para a casa, vivem em França, só cá vêm de vez em quando, e puseram a casa à venda.

Calou-se ela e calei-me eu.

–A casa da Prima Ofélia está à venda???–murmurei

–Está. E eu pensei que tu talvez estivesses interessada…Nunca se sabe, podias querer começar um novo negócio…

Aí é que rebentámos as duas. Eu ria tanto, mas tanto, que tive de me encostar à parede para não cair. Chamei-lhe todos os nomes, ela continuava, “nunca se diz não a um bom negócio…”—e não parávamos de rir.

Então lá disse à Isaura que parvoíce tem limite, e que lhe telefonava depois para nos rirmos um pouco mais.

O Isidoro veio ver que risota era aquela, e bastou eu dizer-lhe  “a casa da Prima Ofélia…” para as gargalhadas dele fazerem coro com as minhas:

–A santa… A santa da família…

A Prima Ofélia. Há quantos anos não me lembrava da Prima Ofélia.

Toda a gente sabia que a Prima Ofélia era santa. Lembro-me dela muito feia, muito velha, a falar sempre muito baixinho, de olhos postos no chão.

Nunca íamos a casa da Prima Ofélia… Era voz corrente que o marido lhe deixava o corpo cheio de nódoas negras de tanta tareia, que regateava até ao último tostão o dinheiro que lhe entregava, e que não gostava de nós.

Quando ele morreu, passou ela a vir muito a nossa casa.  Nem nos passava pela cabeça ir à dela, que até era longe da nossa. Trazia-me sempre chocolates, livros de histórias, e ninguém sabia como ela arranjava dinheiro.

–Coitada, deve passar fome para ser simpática para nós…Santa, uma santa.

E, se calhar por ser uma santa, a Prima Ofélia morreu muito velha. Tão velha que, lá na Arruda, só a mãe da Isaura e a minha mãe é que ainda eram vagamente familiares dela. O senhorio ligou com alguma pressa de ter a casa de volta, nós que lá fôssemos despejá-la o mais depressa possível.

–Não estou para aturar o Acácio—disse a minha mãe—vai lá tu e a Isaura, que são novas e têm mais paciência.

Para além de santa, a Prima Ofélia era o cúmulo da arrumação–como verificámos assim que entrámos. Os quartos todos arranjados, almofadas e colchas garridas, e pelo ar um forte cheiro a incenso e a flores de papel.

Quando abrimos as gavetas, não havia nada, rigorosamente nada fora do lugar. Uma série de envelopes, todos empilhados uns sobre os outros, e uma série de documentos todos presos por um clip.

Estávamos nós no nosso trabalho, quando tocou a campainha.

Abro a porta e uma força da natureza feminina, dois metros por dois metros, sem se apresentar, pega nas minha mãos e diz que sempre foi de boas contas e “mesmo com essa santinha morta, coitadinha,  estou aqui para pagar o que devo.”

Digo-lhe que não sabemos de nada, que já vimos os documentos todos e não há nada para pagar, mas ela entrega-me uma data de notas, presas por um elástico,  e continua:

–Ai isso é que há. Sim porque aquela santa sabia como a nossa vida é difícil, quem lhe chamou fácil só podia ser um estuporado de um homem, e nem sempre lhe podíamos pagar os quartos a horas, por isso ela deixava-nos pagar quando tivéssemos dinheiro—e logo havia de me morrer num mês em que lhe fiquei a dever..

Devolvo-lhe o dinheiro, mas ela volta a enfiar-me as notas nas mãos, “era o que faltava, sempre fui de muito boas contas”. Digo-lhe que a casa agora é do senhorio. E ela desata num pranto de genuína saudade pela prima Ofélia, e pergunta como é que ela e as meninas vão agora arranjar outra santa como aquela, que lhes fiava os quartos quando a freguesia rareava.

Só me lembro de a ver descer as escadas a fungar, “ai, a minha rica santinha, ai a minha rica santinha,” a Isaura de olhos esbugalhados, eu com uma data de notas nas mãos—e a santidade da Prima Ofélia a esboroar-se lentamente pelos meus dedos

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