“A importância de se chamar Matias”.

33º Capítulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Em vez de Ernesto, Óscar Wilde bem que poderia ter escrito “A importância de se chamar Matias”. Mas para isso era preciso conhecer a história, ela também baseada em equívocos e num enorme erro.

Entrei para o jornal com apenas 19 anos, um miúdo cheio de sonhos e com todo o sangue a ferver-me na guelra. Quem me recebeu foi o Manuel Inácio, o Inácio, o meu ídolo, sem tirar nem pôr.

Falámos durante quase uma hora sobre o que eu queria e porque o queria. Eu devo ter passado todo o tempo a gaguejar. Aquele era o maior nome do jornalismo e estava ali a falar-me do que era ser jornalista, da responsabilidade da palavra escrita e partilhada, da coragem de falar verdade e da necessidade de ser prudente também. Eu ouvia-o sem o ouvir. Na minha mente havia apenas uma certeza: queria trabalhar naquele local, aprender com ele, ser como ele.

Esqueci o meu curso de Direito, pelo qual tinha optado em contrapartida a seguir a carreira militar hereditária, que fora o meu sonho secreto durante tantos anos, e entendi que ser jornalista, dar voz a quem não tinha voz, era a melhor maneira de conseguir justiça para todos.

Saí de lá pisando nuvens e do meu ano de estagiário guardo, ao lado dos cheiros da minha infância, recordações que me enchem a alma ainda hoje.

Fosse porque fosse, o Inácio tomou-me debaixo da sua asa. Se calhar foi porque eu não o largava, como um cachorrinho saltitante ao lado da mãe. Bom, neste caso pai, se bem que o Inácio nunca foi um pai para mim, mas antes um grande amigo, o maior e o melhor amigo que alguém poderia desejar.

Sem saber bem como, passámos a ter uma rotina de nos encontrarmos todas as quintas-feiras, depois do fecho do jornal, para tomar um copo. Primeiro, num bar perto do jornal, depois, em casa dele, que também não ficava longe. O Inácio vivia sozinho, ao contrário de mim, que, por uma “tolice de juventude”, casara apressadamente e debatia-me agora entre a vontade de voltar a casa, ver a Patrícia e o bebé, e o desejo de prolongar um pouco mais o tempo de liberdade, longe dos choros, biberons e fraldas, em que se tornara rapidamente a minha vida.

Falávamos de tudo e de nada, mas sobretudo de política e do estado a que o país tinha chegado. A censura, de tão apertada, chegava a ser ridícula. Pelo menos naquela casa eu podia ouvir música que o regime achava “perigosa” e ler alguns livros considerados panfletários. Era, aliás, a biblioteca, o que mais me atraía, muito embora houvesse uma coisa que me deixava intrigado: o número de Bíblias que aquele homem, que todos consideravam um revolucionário, possuía. Um dia não me contive:

– E eu a achar que eras comunista….

Ele acendeu um cigarro e com o maior dos à vontade, disse:

– E sou!

-Mas então estas Bíblias todas são para despistar, é? Na volta só são as capas e lá dentro estão livros ainda mais proibidos do que aqueles que tens em segunda fila.

– Enganas-te meu rapaz. São Bíblias mesmo. Sou comunista e católico.

Aquilo, a mim, fez-me uma confusão dos diabos. Literalmente!! Como era possível tal coisa?

O Inácio explicou-me como, e, de passagem, não só me deu uma lição sobre o que era o comunismo (coisa que eu intuía, mas desconhecia) e como se articulava com o catolicismo.

– Quer isso dizer que tu e o Cardeal Cerejeira poderiam ser grandes amigos? – piquei-o.

– Deus me livre!!! Eu sou católico, mas estou completamente em desacordo com a hierarquia da igreja. Para mim são duas coisas completamente distintas.

A partir desse dia passou a fazer questão de me iniciar numa e noutra área: a fé e a política.

Daí a tornar-me membro do Partido foi um instante, e com a militância passei à ação .

Comecei a escrever com outra desenvoltura e liberdade para jornais absolutamente clandestinos, em tipografias de vão de escada.

O grande problema era a distribuição. Mas aí eu contava com um trunfo fantástico: um carrinho de bebé. Acredito que tenha sido dos primeiros pais a passear a criança pelas ruas de Lisboa e nem sempre a horas convencionais. O colchão fora substituído por folhas e folhas de jornais, algumas vezes ainda frescas de tinta, que tingiam os casaquinhos feitos primorosamente pelas avós dum doutro lado.

A Patrícia achava imensa graça. Aliás, fora para mim uma surpresa a forma como reagiu quando soube desta minha vida dupla.

– Ah se o meu pai sonhasse – dizia, rindo de cada vez que preparava o carrinho.

Acompanhava-me muitas vezes, mas uma segunda gravidez inesperada fez-me afastá-la dessas lides. Uma coisa era apanharem-me a mim com a criança, à qual naturalmente não fariam nada. Outra, era ela naquele estado ser presa pela PIDE.

Uma noite fui mandado parar. O Guarda Republicano achou estranho um homem, àquela hora, já passava das oito da noite, a passear um bebé. Expliquei que a criança só sossegava assim, no carro e a passear.

– Então e a mãe, não pode trazê-lo?

– Ó senhor Guarda, a minha esposa está de novo de esperanças…

Ele riu:

– Ah maganão, isso é que é trabalhar!!! Mas veja lá se ela passeia o miúdo, que um homem nesses preparos até parece mal. Afinal as mulheres são para isso mesmo, para tratar de nós e dos filhos.

Fiz um sorriso amarelo e despedi-me.

Mas poucos dias depois, regressava eu de mais uma distribuição, quando fui novamente abordado, desta vez por um polícia à paisana. PIDE, está bem de ver.

Lá lhe dei a mesma desculpa, só que desta vez o tipo exigiu que tirasse o miúdo do carro. O pequeno ao ver-se assim tirado do soninho bom em que estava, desatou num berreiro.  Eu bem tentava acalmá-lo, enquanto o Pide virava e revirava o carrinho. Deve ter achado estranho que a criança estivesse apenas em cima duma mantinha. Ou talvez não. Naquele tempo os homens sabiam lá como lidar com crianças, ainda mais de colo.

Como o pequeno continuasse a berrar, o tipo exasperou-se:

– Ponha lá o catraio na cama e desapareça.

Eu suava, tentando com uma mão organizar minimamente o ninho de ratos em que o outro tinha deixado o carrinho, e com a outra segurar a criança contra o peito.

– Se me pudesse dar aqui uma ajudinha… – acabei por pedir.

Contrafeito, o Pide pegou no Jaime sem jeito nenhum, agarrando-o contra si como se fosse uma trouxa. Quando finalmente o deitei e olhei o PIDE, vi que o miúdo lhe deixara uma enorme “medalha” no fato.

Acho que nunca tinha sentido tanto orgulho em ser pai. O meu filho mijara na ditadura!

Ver todos os capítulos aqui: “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”