“Retratos Contados do Miguel Araújo”

“Os sinos tocaram a quebrado pela minha avó em 2007, e eu tenho muitas saudades. “

Eu nasci em Águas Santas, na Maia. Mas a minha família Araújo é do Porto. Do centro do Porto, mesmo, do largo de São Domingos. Ali pelos finais do século XVIII migraram de Guimarães para lá e estabeleceram-se como comerciantes.

Em 1829 abriram uma papelaria que ainda existe, chamada “Araújo e Sobrinho”.

Diz-se, com aquele orgulho que vem de preservar as coisas antigas, que é a papelaria mais antiga do mundo ainda na mesma família. Diz-se isto no seio da família, claro.

A Araujo & Sobrinho, fundada por Manuel Francisco de Araújo em 1829, iniciou a sua actividade como um armazém de papel e é actualmente uma das papelarias mais antigas do mundo e, seguramente, a papelaria mais antiga da cidade do Porto.

Miguel Araújo com a avó Helena

Só que eu nasci em Águas Santas, na Maia, e por lá cresci. O meu trisavô, ou então tetravô, não sei ao certo, ao cabo de dois ou três anos de azáfama burguesa de centro de cidade decidiu que por ele bastava e mudou-se para uma zona rural, ainda naqueles tempos em que se ia do Porto para a Maia em carros de cavalos e se demorava não sei quantos dias, morriam uns pelo caminho e nasciam outros, a comitiva pernoitava em estalagens onde aparecia alguém para tratar dos cavalos e onde a senhora matava um galo para o jantar.

E por Águas Santas se foram ficando. Com o passar do tempo lento, em toda a sua velocidade e voracidade furiosa, a cidade foi metastizando as suas garras de caranguejo para lá de si e Águas Santas foi apanhada pelos prédios, metamorfozeando-se aos poucos numa cidade dormitório do Porto. E a minha família foi-se ficando, enclausurada numas quintas antigas, uma espécie de mini aldeias gaulesas onde tractores se batiam com tróleis numa guerra de sempre entre o passado e o futuro.

Foi assim que eu cresci, nuns minifúndios  fechados ao resto do mundo, onde raramente se ousava contra o mundo lá fora. Eu às vezes acompanhava a minha mãe numas incursões à enorme Rua Afonso Henriques, para nos abastecermos de roupas de contrafacção numa enorme loja que adequada e convenientemente se chamava “Barulhão”, comida ultra-congelada no supermercado Ferreira, fotografias tipo-passe para a matrícula do colégio no centro de fotografias Lupi e, por prémio, eu trazia um Pez Dispenser, uns cromos do México 86 e um Ióió Russel cinco estrelas.

Depois era depositado em casa da minha avó, com muitos primos de idades próximas, onde o Carlos Jaime, que trabalhava lá, nos empurrava num carrinho de mão pela terra afora, numa gritaria interrompida invariavelmente pela minha avó, que contra-atacava com uma rajada de ameaças de morte. Julgo que nunca ninguém chegou propriamente a ser açoitado pelo chicote de couro pendurado desde sempre e para sempre na porta da despensa, mas ninguém queria ser o primeiro.

O que é certo é que a minha avó parecia bastante credível, quando afirmava com todo o carinho que nos mimaria com a providencial arma branca até “tocar a quebrado”. Eu, que gosto de me debruçar sobre este tipo de expressões antigas, percebo hoje que “tocar a quebrado” significa qualquer coisa como “até os sinos tocarem por alguém que acaba de falecer”. Na altura eu não seria tão literal, mas a voz com que tais sentenças eram proferidas resultavam credíveis ao ponto de não ser sequer necessário indagar sobre a respectiva semântica. Eram, sem dúvida, ameaças de morte.

As casas já não existem, julgo que a loja “Barulhão” também não resistiu à inexorável marcha do tempo. Os sinos tocaram a quebrado pela minha avó em 2007, neste dia 13 de Junho, e eu tenho muitas saudades. Acho que não passa um dia sem que eu me lembre dela.

O chicote está bem guardado comigo, avó.

Esta avó irá viver para sempre nas memórias e no coração do Miguel. Não deixem de seguir o trabalho deste neto aqui: Miguel Araújo

Tem 4 discos editados a solo: “Cinco Dias e Meio” (2012), “Crónicas da Cidade Grande” (2014), “Cidade Grande ao Vivo no Coliseu do Porto (2015) e “Giesta” (2017). É um dos fundadores dos Azeitonas e fez parte da banda desde a sua formação até 2016. Como autor, tem escrito e composto para vários intérpretes, tais como Ana Moura, António Zambujo, Carminho, Raquel Tavares e Ana Bacalhau. “Anda Comigo ver os Aviões”, “Maridos das Outras”, “Pica do Sete” e “Dona Laura” são algumas das suas composições mais conhecidas.

Quem sabe um dia o Miguel Araújo venha a partilhar connosco um Testemunho sobre os outros avós. Ou a a escrever e compor um Hino para valorizar os mais velhos…

Fica o desafio.