
26ª Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela.
Ouço a voz da Rosa a chamar-me da rua.
— No restaurante da esquina têm sardinhas. Eu hoje não tenho aulas, queres ir?
–Sardinhas? Aqui? Ó Rosa, sardinhas é em Alfama, nos arraiais…Com manjericos…Cravos de papel…
–Melhor que nada…
–E sabes se há lugares? Agora só entra meia dúzia de pessoas…
–Já liguei. E por acaso até já marquei…Mas se não quiseres..
–Pronto, já desço.
Ponho a máscara, olho para o espelho, até parece que vou assaltar um banco, e enfio o telemóvel no bolso.
Não me posso esquecer de telefonar ao Jaime. É verdade que eles não me ligam nenhuma, mas pronto, pai é pai, e dia de anos é dia de anos.
Lá entrámos no restaurante, mais empregados que clientes, que horror, como é que esta gente se vai safar…E mesmo assim, para porem estas pessoas, têm de colocar acrílico à nossa volta, parece que estamos presos… Meu Deus, como é que de repente aconteceu isto no mundo inteiro?
A Rosa lá pediu as sardinhas enquanto eu ligava para o Jaime.
–Parabéns, filho
–Lembrou-se, pai? Que bom.
–Então não me havia de lembrar..
Já ia começar a disparatar mas contive-me, calma Matias, calma.
–Se há coisa de que nunca me esqueço é do dia do teu nascimento… A tua mãe nunca te contou? Foi cá uma aventura…
Entretanto as sardinhas já estavam na mesa. Pode não haver arraial, mas pelo menos gosto de as comer bem quentes.
–Olha, a tua mãe que te conte… Beijinhos a todos
Desliguei , ainda a rir.
A Rosa também olhava para mim , espantada.
E de repente vi-me, há 35 anos, a tentar convencer a Patrícia a ir comigo a Alfama. Eu tinha a reportagem a fazer para o jornal, tinha de dar voltas e voltas à cabeça para não escrever todos os anos a mesma coisa, ela sempre podia dar uma ajudinha.
Mas a Patrícia não era muito de santos populares, e então grávida, era melhor ficar em casa. É claro que se não fosse a reportagem eu também tinha ficado, mas assim, tinha mesmo de ir.
–Não demoro muito, prometo.
–Traz-me um manjerico– pediu ela.
Lá fui, entrevistei meia dúzia de pessoas, comprei um manjerico e vim para casa.
Um papel na mesa da entrada dizia “vou à urgência, não demoro”
Corri escada abaixo, de manjerico na mão, que teria ela ido fazer à`urgência?, parecia que voava e em minutos entrava no hospital, sem fôlego.
–A minha mulher chama-se Patrícia, veio para as urgências, podem dar-me notícias?”
A empregada consultou fichas e mais fichas.
–Ah, já encontrei. A sua mulher está na sala de partos”
–Na sala de partos??? A fazer o quê?
–Se calhar a saltar à fogueira…
–Ó senhora não brinque comigo que isto não tem graça nenhuma..”
–Então o que quer o senhor que ela esteja a fazer na sala de partos? A ter a criança…
–Qual criança?
–Espero que seja a sua…
–Não me enerve… A criança não era para nascer agora, ainda faltava muito tempo…
–Adiantou-se,que quer que lhe faça.
Fumei cigarros atrás de cigarros, as horas passavam e ninguém me dizia nada. Fui de novo ao guichet, a empregada já era outra.
–Já há notícias da minha mulher?
–A que horas entrou ela?
Aí engasguei-me, sabia lá a que horas ela tinha chegado
–Não sei, só quando cheguei a casa é que tinha lá um recado dela a dizer que tinha vindo para as urgências…
–Estou a ver…–resmungou a empregada—foi para a farra e a mulher que ficasse em casa.–.Os homens não prestam mesmo…É por essas e por outras que nunca me hei-de casar…
Estava exausto, já não sabia o que fazer, eram cigarros atrás de cigarros.
Por aquela porta já tinham entrado cinco cabeças partidas, um pescoço com uma naifada, três costelas deslocadas, duas cólicas de rins, e uma voz que berrava “agarrem-me, agarrem-me senão eu mato-a”.
Transpirava, a minha cabeça andava à roda.
Deixei-me cair no sofá.
Depois só sei o que me contaram.
O médico chegou ao pé de mim e disse:
–Parabéns, tem ali um rapaz e peras …Pesa…
E acho que não disse mais nada : descalço, de colarinho desapertado, de manjerico caído aos meus pés, eu dormia o sono dos justos.
Enquanto no guichet a empregada repetia:
–É por estas e por outras que nunca me hei-de casar.
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