25º Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.
Isto das memórias são como as cerejas: umas arrastam as outras, a maior parte das vezes ao molho e sem qualquer seguimento. As memórias, bem entendido que cereja é cereja e o único que se quer é que seja carnuda e docinha.
Pronto cá está. Comecei numa ponta e já estou a perder-me. E não digam que é coisa da idade! Isto acontece a qualquer um. Que mania de pensarem que os velhos são seres inferiores. Olha como aquela ideia de nos fecharem mais uns tempos em casa enquanto o resto do Mundo, larai, larai , tudo já a poder passear. Era só o que faltava! Eu quando ouvi isso deu-me uma fúria e disse para comigo : “Maria do Socorro , nem que seja a última vez que desces aquelas benditas escadas tu vais prá rua, que a rua é de todos e para te prenderem têm que te acusar. E ser velho não é crime. É questão de tempo.”
Para meu alívio, que já me estava a ver a esbardalhar-me escadas a baixo, lá arrepiaram caminho.
Mas vinha isto a propósito de…- Ah já sei.
Hoje é um consolo estar à janela. Voltou a haver movimento na rua e embora com poucas pessoas e todas elas mascaradas ( eh eh eh e falávamos nós contra as mulheres árabes de lenço. É bem verdade que pela boca morre o peixe.) é como se a vida tivesse voltado.
Até o vizinho Isidoro saiu. Digo-lhe adeus mas não me vê. A máscara deve fazer diferença também à visão e tal como todos já não vai para novo.
Ao vê-lo lembrei-me dum episódio que ainda hoje me faz rir.
Mas para o contar vou pegar num outro (eu não digo que isto das lembranças são como as cerejas?).
Como disse a minha senhora antes do 25 de Abril era um bocadinho do reviralho para grande preocupação do Sr. Engenheiro que, embora também não fosse à bola com o “botas”, era mais discreto.
Outro dia ao folhear os álbuns (lá vem outra vez a cara do mafarrico. Xô, xô!) encontrei várias fotos onde estava ela acompanhada da Natália Correia. Essa mesma, a grande poetisa! Era uma mulher em todos os sentidos. Linda, linda de fazer os homens virarem a cabeça e as mulheres roerem-se de inveja. E a beleza não era apenas de fora. Era assim como uma luz, uma coisa que não se explica, uma presença que quando entrava numa sala tudo o resto parecia ficar pequenino e na sombra.
Ela e a minha senhora eram muito, mesmo muito amigas. Foi sempre uma coisa engraçada: os senhores davam-se com gente do regime, talvez por necessidade e com gente do contra. Se bem que em ambos os lados havia gente boa e má como em tudo na vida. Adiante…
Pois elas eram muito amigas. Antes do regime cair muitas vezes a minha senhora foi a um bar ou uma casa de chá não sei bem, que a D. Natália tinha e ficava lá até altas horas da noite. O Senhor Engenheiro acompanhava-a quase sempre, porque “ não fica bem a uma senhora apanhar um táxi para casa a desoras!” Mas de vez enquanto aí ia ela “ beber um bocadinho de cultura e de liberdade” como dizia e antes que o marido pudesse pousar o jornal e pegar no casaco já ela estava a caminho.
Mas a senhora D. Natália era visita também cá de casa.
Tinham ambas espíritos e opiniões muito fortes e por vezes as discussões ouviam-se no patamar da escada. A senhora D. Natália falava sempre alto quando queria fazer passar a sua, como se estivesse constantemente a falar para o público.
-A Natália devia ir para a Assembleia Nacional. Aí sim podia discursar à vontade.
A outra pegava na malinha de mão e batia a porta atrás de si com fúria.
– Nem o meu cadáver , nem o meu fantasma, transporia as portas desses antro de fascistas.
Durante dias não se falavam . Mas depois tudo retomava o mesmo ritmo como se nada tivesse acontecido.
Não sei se por profecia o certo é que depois do 25 de Abril a srª D. Natália acabou como deputada. Nessa altura já se podiam discutir as ideias que se tinham calado durante o tempo da ditadura e mesmo aqui em casa muita coisa ouvi e muito aprendi sobre direitos, liberdade, sexualidade (benza-me Deus) e outras coisas . Não que escutasse às portas que nunca fui dessas . Mas como digo, falavam alto e surda nunca fui.
Havia no entanto um assunto que quando vinha à baila dava discussão acesa. Aliás era de tal forma que eu estava sempre à espera de ver qual das duas dava com a carteira (naquela altura uma senhora mesmo em sua casa tinha sempre ao seu lado a carteira de mão), na cabeça da outra.
O tema era o aborto. A minha senhora católica de missa dominical e talvez por nunca ter sido abençoada com um filho, não podia ouvir falar de tal.
A srª D. Natália essa defendia que o corpo da mulher era o seu templo e nele a única autoridade era a sua consciência e a sua vontade.
– Mas e o anjinho? Não tem vontade?
– Qual anjinho? O feto no inicio é igual seja de homem ou de animal ! Achas que uma mulher violada tem a obrigação de manter uma gravidez até ao fim? Ser duplamente castigada e humilhada sem culpa?
– Para isso dá-o para adoção..
– Para a criança ficar anos a fio num orfanato, sem amor sem condições… para ir parar às mãos sabe-se lá de quem . Condenas a mãe e condenas o filho. Isso é pensamento moldado na Santa Madre Igreja que matou e continua a matar em nome de Deus mais que muitas guerras.
E os ânimos azedavam-se forte e feio.
Um dia o sr. Engenheiro ao voltar a casa encontrou esta cena e prudente refugiou-se no escritório sempre pronto para intervir caso fosse preciso separá-las. Até que ouviu o estrondo da porta que anunciava o fim da discussão.
Foi encontrar a senhora na sala muito abatida e nervosa. Ouviu-a durante muito tempo comentar as ideias da poetisa, a sua falta de humanidade, o seu coração duro…
Com a calma que sempre tinha disse-lhe:
– Ouve cá Maria Emília, tu já reparaste que quem faz abortos são sobretudo mulheres comunistas ?
Eu ouvi aquilo e disse de mim para comigo que não era verdade. Pelo menos a meia dúzia das mulheres que conhecia não eram, mas enfim se o Senhor Engenheiro dizia…
– Tens razão. Nenhuma mulher temente a Deus comete semelhante pecado.
– Pois então deixa fazer. São menos uns comunistas que nascem.
Foi remédio santo.
Na vez seguinte em que o tema veio à baila , a minha senhora limitou-se a sorrir e a acenar com a cabeça como se guardasse um segredo precioso. À srª D. Natália aquilo deve ter parecido estranho: ou conseguira convencer a amiga ou a vencera pelo cansaço. Desistiu do assunto.
Mas que tem isto a ver com o Isidoro?
Essa é outra história e conta-se rápido.
A poetisa tinha uma cadela, a Paloma e por vezes quando a levava ao veterinário que era aqui no bairro trazia-a para o chá. A bichinha era tranquila e amorosa.
Porém numa dessas vezes talvez por vir mais excitada do médico, viu o vizinho Isidoro na rua e sem se saber porquê nem porque não, atirou-se-lhe às pernas, rasgou-lhe as calças e feriu-o ligeiramente.
Por azar da dona, ia a passar um polícia que interveio de imediato e queria à força toda levar a cadela para a colocar em quarentena, contra a vontade do homem que dizia que a bicha lhe tinha apenas esfrangalhado as calças e com umas novas o caso ficava resolvido.
Mas com a srª D. Natália as coisas tomavam sempre grandes proporções.
Gritou ao polícia toda a rua veio à janela:
– Na minha Paloma ninguém toca. Este ser já me inspirou um poema. Esse homem não me inspira nada. Além disso não é culpa dela. Se não se chamasse Isidoro provavelmente não lhe tinha cheirado a salsicha.
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