“Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”
quarta, 17 de fevereiro de 2021 – Livros Desconfinados.

Querida avó,
A partir desta semana os livros começaram a desconfiar. Com muitos limites, é certo, mas é uma luz ao fundo do túnel.
O Governo aprovou um conjunto de novas medidas para a próxima quinzena. Uma delas é a permissão de venda de livros. Por agora, apenas os supermercados e hipermercados, vão poder voltar a vender livros.
Na passada semana, ouvi o António Costa a dizer que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, “proibiu de proibir” a venda de livros nestes estabelecimentos. No entanto, as livrarias independentes continuam de portas fechadas.
Confesso que me faz alguma (muita), confusão. As livrarias podiam estar abertas com o número de entradas limitadas, ou com vendas ao postigo.
Uma pessoa sempre podia comprar a coleção dos livros “Guerra e Paz” do Tolstói. Como são 11 volumes, com mais do que mil páginas por volume …, a pessoa ficava com leitura para meses de confinamento.
Vá, na loucura, para os mais otimistas poderem comprar “Os Maias “, sempre são menos páginas, apenas um volume, e é um autor português. Não vá o Confinamento acabar mais cedo, e ficarmos com a casa cheia de livros que “não servem para nada”.
Eu sei que todos nós encontramos desculpas para sair de casa. Se as livrarias estivessem abertas, esse seria mais um motivo que nos levava a não estar em casa.
A sério, por amor da Santa, será que são assim tantos os interessados em comprar livros, que vão causar enchentes em livrarias, e fazer filas à porta que dão a volta à rua?
– “Que enchente é aquela? A Final da Taça de futebol?”
– “Não! Não vês que é a porta da livraria!”
Eu percebo que os quiosques estejam abertos para vender jornais. As pessoas podem e devem manter-se informadas sobre a Pandemia, a vacinação, se os hospitais estão ou não a “rebentar pelas costuras”, as medidas que o governo vai implementando… Os jornais são da maior importância, até para quem gosta de saber informações sobre a meteorologia, ou sobre as previsões astrológicas. A senhora que limpa aqui prédio diz muitas vezes: “Se não vejo o meu signo de manhã, o dia já não me corre bem”. Anda tristíssima desde que não vê diariamente as Cartas da Maya, no Manhã CM, na CMTV. Já lhe disse que pode ver nas redes socias, mas não me parece que seja o seu forte. Por isso a importância do jornal para ela e para tantos outros.
Agora, gostaria que me explicassem, porque não se podem vender livros mas sempre se puderam vender as chamadas “Revistas do Social”. Essas revistas não trazem as mesmas informações que os jornais…
Todas as floristas estão de portas abertas pois comprar flores é importante, mas os livros não!
Podemos sair para comprar raspadinhas, jogar no Euromilhões e comprar tabaco … mas não podemos ser “viciados / dependentes” de livros.
Os livros sempre foram perigosos para a humanidade!
Durante séculos a leitura foi um privilégio reservado apenas aos homens. A mudança de ideais religiosos, culturais e políticos, sempre originou na destruição dos livros existentes.
Em todo o mundo sempre existiu um mercado paralelo para a venda de “livros proibidos”.
Na nossa história mais recente, recordo-me do exemplo de Snu Abecassis, fundadora da Publicações Dom Quixote, que se notabilizou por publicar livros considerados de esquerda, com ideias contrárias à ditadura do Estado Novo. Numa altura em que grande parte da população era analfabeta, ainda assim gostava de ser informada por aqueles que sabiam ler.
Tantas vezes que o avô Alberto me pedia para ler livros, jornais, panfletos … e me dizia: “ Quando a população é ignorante e analfabeta, o poder fica com a vida facilitada para nos dominar com mais facilidade”
Ainda na passada sexta-feira, fui a uma papelaria comprar os envelopes que me pediste. O que me custou ver os livros com fitas em cima, amarrados às prateleiras ,cheios de vontade de sair para casa de quem lhes dê uso, quem cuide deles, quem os ame …
Mas não! Para além dos teus envelopes, se eu quisesse podia ter comprado jornais, as revistas do social … mas os livros não! São perigosos! Sempre que vou às grandes superfícies, é ver as pessoas a folhearem as ditas revistas, (agora com a máscara com mais denoto uma certa dificuldade em humedecer os dedos para folhear as revistas, mas nada que quem está habituado a tal, não o faça), depois voltam a colocá-las no lugar. Mas isso é tranquilo! Revistas manuseadas por muitos não há problema. Até porque dão emprego a muita gente. Agora livros? Cruzes, credo. Isso é que não! Os escritores não fazem nada. Estão no bem-bom todo o dia. Quando lhes apetece escrevem umas coisas e ganham uma fortuna com os direitos de autor. E os editores? E os livreiros? Uma corja! E os que trabalham nas gráficas, paginadores, distribuidores …? Tudo para lay off já!
Bom, veremos as próximas decisões do Presidente da República e do Governo em relação a esta matéria.
Por agora, temos que nos contentar com os livros nas grandes superfícies e com a possibilidade de entregas em casa.
Agora lembrei-me da minha avó Vitória que dizia muitas vezes “As migalhas também são pão”!
Bem avó Alice, agora vou fazer um passeio higiénico pois isso é permitido. Higienizar a cabeça com livros é que não.
Os livros são perigosos!

Querido neto
Palavra que ainda hoje não percebi por que razão os livros têm de estar confinados . Está bem, agora já desconfinaram um bocadinho, pois já se podem comprar nos hipermercados—mas porque não nas livrarias? Se houvesse magotes de gente à porta (era bom, era…) fazia-se como nos outros sítios :entravam 4 de cada vez e, quando esses saíssem, mais quatro. É o que faz o minimercado à minha porta…E será mais perigoso mexer em livros do que em maçãs?
E será mais perigoso entrar numa livraria—normalmente pequenas—do que num hipermercado?
As pessoas dizem-me, ”ah!, mas há outras maneiras, lemos na net, ou lemos em e-books “ Não é a mesma coisa—embora às vezes resulte. Lembro-me de, há uns cinco anos, a minha neta Adriana estar a arranjar a mala para ir fazer voluntariado para Timor, e enfiar lá para dentro um kindle. “Ó Adriana, então tu consegues ler livros nessa coisa?” E ela só me respondeu: “então diz-me lá como é que eu meto 100 livros na mala…” Calou-me, claro. Para essas eventualidades são boas. Mas não para escolhermos e comprarmos um ou dois para trazermos para nossa casa.
Caramba, levámos tanto tempo para criarmos esta ótima rede de bibliotecas que temos –e agora não as podemos usar para lá irmos requisitar um livro ou dois? Mesmo que os pedíssemos ao postigo?
Ah, também é permitido comprar livros em lojas que não vendam só livros. Quem deve estar feliz é o meu amigo Zé Pinho, de Óbidos, que vende livros dentro de mercearias, drogarias, igrejas…
Será que já se pensou no que isto representa para as editoras…que nunca viveram desafogadamente?
O Presidente Marcelo, que adora livros (já fui uma vez com ele ajudá-lo a largar sacos de livros na biblioteca de Celorico, que tem o nome da sua avó e que é para onde vão todos os que ele já não consegue ter em casa…) está de acordo com isto?
O António Costa, filho de um grande escritor (Orlando da Costa) está de acordo com isto?
Então quem é que deu a ordem?
Quando foi da última guerra, vieram ter com Churchill para lhe pedir que cortasse em tudo o que fosse cultura para ajudar ao esforço de guerra. E ele respondeu: Se cortássemos na cultura, “then what were we fighting for?” (“ estávamos a lutar para quê?”)
E fico-me por aqui. Tenho um livro para acabar de ler.
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”