“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”
sábado – 20 de fevereiro 2021– Vitorino Nemésio.
Querida avó,
Faz hoje 43 anos que morreu Vitorino Nemésio.
As gerações mais novas não devem saber nada, ou quase nada, deste homem que nasceu nos Açores, na ilha Terceira e que foi multifacetado. Para além de outras coisas foi: Poeta, ficcionista, ensaísta, cronista e crítico literário português.
Intelectual açoriano, começou por ser um aluno sofrível que se destacou na poesia. Autor do romance ‘Mau Tempo no Canal’, foi um dos grandes escritores portugueses do século XX. Apresentou, na RTP, o popular programa ‘Se Bem me Lembro’ e marcou a geração anterior à minha.
Nunca vi programa nenhum, nem li nada (até ao momento) do Vitorino Nemésio. No entanto, durante a minha infância, recordo-me perfeitamente de ouvir muita gente usar a expressão “Se bem me lembro”.
Assim, como ainda hoje, é recorrente ouvir a expressão “Mau Tempo no Canal”. Embora de forma errada! Uma vez que o livro retrata a sociedade açoriana, mais concretamente, a sociedade estratificada da cidade da Horta, local onde se passa a intriga principal da obra e onde o autor se encontra nesta altura da sua vida. E não tem nada a ver com a meteorologia açoriana, como tantas vezes é referido.
Na infância a vida não lhe correu bem em termos de sucesso escolar, uma vez que foi expulso do Liceu de Angra, e reprovou o 5.º ano, facto que o levou a sentir-se incompreendido pelos professores.
Descreveu Penacova de forma ímpar: “Penacova é luz e penedia, com o que quer que seja de pirenaico, trazido às proporções da ternura e rusticidade portuguesa”; ou, “É preciso chegar às abertas e miradouros para achar a razão de ser da fama de Penacova que é o seu admirável panoramo de água, pinho e penedia.”
Eternamente ligado ao Concelho de Penacova, cujo património lhe serviu muitas vezes de inspiração, Nemésio, que foi Presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos Moinhos. Foi proprietário de três moinhos e de uma mata em Penacoca.
Outra curiosidade sobre Vitorino Nemésio, faleceu a 20 de fevereiro de 1978, em Lisboa, no Hospital da CUF, e foi sepultado no cemitério de Santo António dos Olivais, em Coimbra, a seu pedido, depois de os sinos terem tocado o Aleluia, em vez do dobre a finados.
Mas penso que tu, querida avó, que és de outra geração, terás muito mais para recordar sobre o Vitorino Nemésio.
Beijinhos.
Fica bem.
Ah, é verdade, se quiseres recordar alguns vídeos do Vitorino Nemésio basta clicares aqui: Se bem me lembro. Recordar é viver. Aproveita o Confinamento par afazeres uma viagem ao passado.
Querido neto
Às vezes penso como, no princípio dos anos 60, ou ainda um pouco antes, as pessoas adoravam programas de televisão mais ou menos eruditos, a preto e branco, e sem qualquer tipo de adereços. Era a pessoa que falava e praticamente mais nada. Uma hora nisto…e sempre os olhos colados ao écran.
Tu ainda não tinhas nascido, não podes compreender isto. Porque era adoração mesmo. Se alguém entrasse na sala e dissesse qualquer coisa, toda as outras pessoas o mandavam calar. Não queriam perder pitada. E aqueles que viam televisão nos cafés, faziam o mesmo. Pessoas que, na maior parte dos casos, só tinham a quarta classe, e às vezes nem isso. Entenderiam o que estavam a ouvir? Eram as vozes das pessoas que os prendiam? Nunca entendi.
Mas lembro-me de um programa chamado “Charlas Linguísticas”, um dos primeiros dessa série a que me refiro, apresentado pelo Padre Raul Machado, e que durou de 1958 a 1961. Ele, na sua batina preta, grandes óculos, um quadro preto a seu lado e um pau de giz na mão. Ensinava as pessoas a saberem falar bem português. Logo no primeiro programa, à laia de apresentação, começou logo por afirmar: “quero já dizer que charlas é uma palavra portuguesa, e Raul não tem acento como puseram aí numa legenda…”
Era um profundo conhecedor da língua portuguesa, e tinha sido o primeiro presidente da Sociedade de Língua Portuguesa. Conseguia que toda a gente ficasse presa ao seu discurso. Lembro-me da luta que travou contra o uso de “madame”, então muito comum entre nós. “Tratem-nas por Senhora Dona, tratem-nas pelo seu nome, tratem-nas por tu, mas nunca por ”madame”!
Mais ou menos pela mesma altura, começou outra emissão de programas chamado “Encruzilhadas da Vida”, da autoria do padre D. António Ribeiro (mais tarde cardeal…) Durou de 1959 a 1967. Esse nem sequer um quadro preto tinha: ele, sozinho, a ocupar todo o écran e a olhar-nos nos olhos.
E a audiência desse ainda era mais inexplicável: até os meus tios e tias, ferozmente anti-clericais até ao último dia das suas vidas, ai estavam, diante do écran, a beberem-lhe as palavras. Uma das minhas tias até sabia frases de cor.
Depois, foi a vez da ciência. Então, em 1961, apareceu o Prof. António Manuel Baptista e seu “Cientificamente”. Grande cientista, de renome internacional, esse às vezes ainda tinha um mapa—mas pouco mais. Êxito idêntico, e o programa durou anos a fio.
Depois apareceu outro, que falava de tudo e de coisa nenhuma…
Lembras-te, meu neto, quando eu te contei aquela vez em que me convidaram para fazer a conferência de abertura de um colóquio sobre literatura, em Cáceres, e quando perguntaram ao “alcalde”, que era meu amigo, “ e qual será o tema?”, ele só lhes respondeu “deixem-na falar”? Eu acho que foi o mesmo que disseram a Vitorino Nemésio, quando o convidaram para uma série de programas, “Se Bem Me Lembro”, com início em 1970.
Mas com este, que nunca tinha um fio certo de discurso, começava a falar de comboios e acabava a falar de pastéis de nata, a minha relação foi complicada. Claro que toda a gente também ficava colada ao écran, e riam muito—mas eu não lhe conseguia achar graça nenhuma.
Por duas razões fortíssimas, a saber:
- Ele tinha sido meu professor na Faculdade de Letras, e o género de discurso era exactamente o mesmo. Ele começava a falar de um assunto, e acabava a falar de outro completamente diferente. Nem sequer sabíamos o que havíamos de estudar, os exames eram perguntas que naquela altura lhe passavam pela cabeça. Lembro-me que, no meu exame me pediu “dê-me uma definição de cultura”, e eu lá papagueei umas coisas.
Ele ouviu, levou a mão à boca, como era seu hábito, e depois lá resmungou: “bom, podia ser melhor, mas enfim não está mal de todo. Onde é que leu isso?”
E eu: “no seu livro “Conhecimento de Poesia”
O exame acabou ali—e eu tive um 10 nem sei como.
- Esta é uma razão bem pior. Eu trabalhava no “Diário Popular”, e uma vez escrevi uma coisa sobre um dos seus programas de que ele não gostou. Então vá de ir ao jornal exigir ao director (na altura o Francisco Pinto Balsemão) para me despedirem. Azar o dele, o Balsemão gostava de mim e nada aconteceu. Devo-lhe essa.
Também ouvi dizer que gostava muito de tocar guitarra, mas que enfim, não tocava lá muito, muito bem-embora ele pensasse que sim.
E pronto, era isto que te queria contar.
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”