39º capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.
Foi num programa desses da tarde, que servem para anestesiar os mais velhos, e fazer com que os que estão doentes se recomponham num ápice de maneira a escaparem àquela tortura, que o vi.
Mas haverá alguém que goste de saber o que se passa numa casa onde meia dúzia de alminhas se confinam voluntariamente e partilham a vida com desconhecidos? Palavra de honra que a mim os reality shows me causam verdadeiro asco. São a pornografia social mais baixa. “Ah e tal são um estudo sociológico…” o tanas!! Isso são desculpas para dar um ar mais intelectual ao que realmente é ali explorado: o inato voyeurismo do ser humano. O mesmo sentimento de doentia cusquice que nos faz abrir todas as gavetas do hotel onde vamos ficar apenas uma noite, nos faz olhar para dentro duma janela sem cortinas ou parar perante um acidente nas estrada. Gostamos de olhar o nosso pior ou a inevitabilidade da vida e da morte a ser protagonizada pelos outros.
Mas enfim… Num desses programas, para além do resumo do reality show da semana (aquelas coisas têm resumos e análises, pasme-se!!!), apareceram uns pares de dançarinos de salão.
Sempre gostei de dança e o meu padrinho apoiou essa ideia que na minha geração povoava grande parte dos sonhos das meninas , de ser bailarina, planar sobre um palco em voo e graciosidade, tutu aberto como pétala de flor.
Fiz ballet clássico durante quase uma década até concluir que jamais seria “bailarina estrela” como via relatado nos diversos livros que então lia.
Abandonei as pontas mas não perdi o amor à dança, a vontade de aliar o movimento à música.
Aliás, um dia em conversa esotérica com o Matias que, coisa nunca vista!, se assumia como católico e comunista, disse esta heresia:
“- Deus, caso exista, é música.
-Música? – perguntou espantado
– Claro. Repara é omnipresente, não há nada que não tenha música. O vento, os ruídos das árvores, o mar. Até o silêncio tem uma certa melodia. Além disso é a única coisa que te transporta para outro local com uma paz e uma alegria totais.
– Bem … isso depende das músicas. Mas repara isso deixaria os surdos sem Deus – respondeu-me rindo.
– Parvo!!! Parvo e ignorante. Até os surdos sentem a música”
Pois foi assim, dançando, que vi novamente o monstro que me roubara a infância naquela noite em que levara preso o meu pai.
Nem queria acreditar! Parei a imagem, retrocedi e vi dezenas de vezes aquele rosto que parecia quase angelical não fosse o olhar frio sob aquela sobrancelha negra .
Era bem certo que “ erva ruim não a queima a geada”. Ali estava aquele verdugo dançando sem uma qualquer preocupação, olhando a câmara de frente, impune, não se importando minimamente ou talvez nem se lembrando que do outro lado do ecrã podiam estar algumas das suas vítimas. Ou descendentes das suas vítimas.
Fiquei gelada, paralisada, olhos fixos naquele homem que dançava o que agora me parecia uma dança macabra. Os anos não lhe tinham sido benévolos. Estava magro, mirrado e velho. Talvez pensasse que passaria despercebido, tão diferente do homenzarrão que fora. Pelo menos a minha memória de menina assim o recordava.
Foi o pontapé que me faltava para me decidir a mudar-me novamente para Lisboa.
Tinha que o encontrar.
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