“Ai, eu já não suporto isto… Esta máscara, que me faz transpirar…”

38º Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela.

Ai, eu já não suporto isto… Isto… Esta máscara, que me faz transpirar, que muda as feições e a voz das pessoas, que nos faz parecer outros, que faz com que ninguém nos conheça, nem nós a eles. Ontem, estava eu no café e vi alguém dirigir-se a mim, com ar furioso (os olhos é a única coisa que a gente vê…) e a berrar:

“Ó pá, mas tu já viste isto? Esta gente não sabe o que anda a fazer… E daqui ao Parque da Nações ainda é um esticão”…

Eu ia mesmo responder “mas você conhece-me de algum lado?” (se fosse a minha Perpétua diria “mas você  andou comigo na modista?”). Quando descobri que era o meu primo Jesualdo, que mora a duas ruas de mim… Ainda bem que não disse nada, senão ele ainda ficava mais furioso, coitado.

Tentei acalmá-lo, ofereci-lhe um café e ele sentou-se à mesa comigo, com as devidas distâncias, e só sem máscaras enquanto bebíamos o café.

Depois disso respirou fundo e lá me contou o que tinha acontecido.

Por causa do vírus, a renovação dos nossos documentos faz-se de maneira diferente. E recebera uma carta para ir levantar o Cartão de Cidadão àquele lugar onde agora funcionam os tribunais e essas coisas, no Parque das Nações.

Aqui que ninguém nos ouve, devo confessar que esse é o sítio de Lisboa que eu mais odeio. No tempo da Expo, passava lá os dias inteiros, aquilo era lindo, e eu, a Perpétua e as miúdas, nem esperávamos tempo nenhum nas filas para entrar porque, se bem se recordam, quem levava crianças passava à frente. Mas depois que aquilo se transformou em bairro, é horrível. Nunca me entendo com aquelas ruas, nem percebo onde elas vão dar.

E o que é que tinha acontecido ao Jesualdo? Assim que lá chegou e foi chamado, avisou logo a funcionária:

“Olhe que eu não tenho impressões digitais…”

Mas ela devia estar com os azeites, ou era do calor da máscara, encolheu os ombros e disse
“Oh meu Deus, aquilo que os ignorantes deste país pensam que sabem…Não tem impressões digitais…Pois não…Tem lá agora…”

À quinta máquina onde enfiou o dedo do Jesualdo, sem resultados, já não tinha tantas certezas…

“Pois… Realmente… Coisa estranha…Nunca  me tinha acontecido…”

Resumindo e concluindo, o Jesualdo foi mandado embora, porque era preciso fazer outro tipo de cartão, e que regressasse quando recebesse nova convocatória, “praí daqui a uma semanita”.

“E daqui a uma semana”, berrava o Jesualdo, “lá tenho eu de voltar, mais despesas no transporte para lá e no transporte para cá… Bastava ela ter olhado para o cartão antigo e acreditar no que eu lhe dizia..”

Fiquei a olhar para ele, sem dizer palavra. Depois lá consegui murmurar:

“Ó..ó Jesualdo..

“Sim ?…”

“Tu… tu não tens impressões digitais??…”

 “Naõ.”

“ A sério??”

“A sério… Mau… Já estás como a mulher do Tribunal?

“ Então… e se tu matas um homem?”

Bom, tive de desatar a correr e voltar rapidamente para casa, senão o homem que o Jesualdo matava era eu.

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