“Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”
domingo, 24 de janeiro 2021 – Dia de Eleições Presidenciais
Querida avó,
Hoje é dia de Eleições Presidenciais.
Lembro-me de crescer a ouvir o meu avô Alberto a falar da importância do voto.
O avô Alberto era analfabeto. No entanto, sabia muito sobre a importância da democracia e do valor do voto de cada um.
Cresci a ouvir as histórias da vida real que o avô Alberto me contava: sobre os papéis que apanhava nas ruas, de madrugada, e que os escondia para serem lidos pelos meus pais. Depois de lidos, eram queimados pelas chamas do fogão a lenha que, na cozinha, estava sempre aceso; sobre a censura; sobre os assuntos e ajuntamentos proibidos; sobre a falta de condições para os trabalhadores; sobre a PIDE; sobre os “bufos”, e muito mais.
O avô Alberto era analfabeto, mas sabia muito bem o que era trabalhar de sol a sol e, ainda assim, o dinheiro não chegar para nada. Sabia que os direitos não eram iguais para todos. Sabia a dificuldade que existia no acesso à saúde, ao ensino e muito mais.
O avô Alberto exibia com orgulho o seu cartão de eleitor. Só começou a votar em 1945, o ano em que começou a ser permitido o voto aos homens analfabetos. Às mulheres só foi permitido votar nas primeiras eleições pós-25 de Abril, em 1975.
Posso não ter herdado do avô Alberto a mesma cor e convicções políticas. No entanto, herdei a responsabilidade de votar.
Todos damos a democracia e a liberdade como direitos garantidos. Mas ainda recentemente assistimos à invasão do Capitólio nos EUA.
A democracia e a liberdade podem ser direitos consagrados na Constituição da República, mas a vida dá muitas voltas…
Faz-me muita confusão ver a realidade partilhada em certas peças jornalísticas na televisão. Nas eleições anteriores, vi um jornalista que andava com fotos de candidatos presidenciais na mão, a perguntar às pessoas se sabiam quem eram. Muitas pessoas não sabiam… mesmo com tantos cartazes nas cidades e debates na tv. Provavelmente, essas pessoas sabem os nomes dos nomeados dos “reality shows”, mas não lhes interessa quem nos governa.
Recordo-me de uma peça jornalística, no dia do funeral do Mário Soares, em que a jornalista perguntava a um jovem de vinte e tal anos: “Que importância teve Mário Soares para a Liberdade em Portugal”? Ao que o jovem respondeu muito orgulhoso: “Bem, não sei ao certo. Mas sei que este senhor era um velhote do PS!”
“Perdoai-lhe Senhor, eles não sabem o que dizem!”
Beijos e até logo.
Querido neto,
Devo ser das poucas pessoas que ainda se lembram—nitidamente!—de ir a um lugar onde estava muita gente a falar alto e a bater palmas e alguns a gritarem por um único nome : Nórton de Matos.
Nessa altura eu tinha 5 anos e era criada pelo meu Tio Joaquim, republicano de gema, que me estava sempre a mostrar as cicatrizes que tinha na perna por ter estado na Rotunda a lutar pela República no dia 5 de Outubro de 1910.
O meu tio entrou em todas as conspirações para deitar abaixo o Estado Novo. E levava-me sempre com ele. Chegava ao café –a Leitaria Persa, no Rossio que hoje é uma loja de artesanato—e era onde se reuniam os conspiradores. Largava-me em cima do balcão e eu adorava lá estar porque todos os que entravam se metiam comigo—uma criança no meio daqueles homens todos…– e eu empanturrava-me de chocolates que eles me davam.
Claro que todas as conspirações falhavam.
Mas naquela altura em que ou comecei a ouvir o nome de Norton de Matos, todos estavam convencidos que as eleições iam deitar abaixo o Estado Novo e eleger este general como presidente. Então o meu tio deixou de ir à Leitaria Persa e andava comigo em comícios (nunca me lembro de ter ouvido tal palavra nesse tempo) e contava-me tudo sobre aquele senhor, o que era, o que fazia, por onde tinha andado, etc… Um dia até me mostrou uma fotografia dele, assinada por ele para o meu tio. Ainda a tenho cá em casa.
Mas depois acabou-se tudo. O Salazar intrometia–se em todos os assuntos, proibia tudo—e ele acabou por desistir.
A minha primeira experiência eleitoral acabou aí.
O meu tio voltou às conspirações na Leitaria Persa e eu com ele.
Passados 10 anos, andava eu no então 5º ano do liceu Filipa de Lencastre e já percebia bem o que se passava — surgiu outro general nas nossas vidas : Humberto Delgado.
Devo dizer que o meu tio não alinhou logo às primeiras. Lembro-me de ele me dizer que era um general da confiança do regime, ná, aquele não o levava. E enfiou-se—e eu com ele—na campanha do outro candidato, Arlindo Vicente. Para mim era óptimo porque o senhor morava mesmo ao pé do meu liceu e eu não falhava a nada….
Até que toda a gente contra o Estado Novo se uniu em volta da candidatura de Humberto Delgado.
E lá voltei eu aos comícios e mais comícios –conservo hoje ainda uma fotografia num deles, no Centro Republicano Fernão Boto Machado a ouvir o Capitão Varela Gomes a falar e eu a bater palmas ao lado da Vera Lagoa—nessa altura ainda Maria Armanda Falcão.
Foi aqui que participei efectivamente pela primeira vez numa campanha eleitoral. Não faltava a comícios, distribuía propaganda, tentava levar outras pessoas.
E depois foi o que foi. A maior fraude eleitoral de que há memória.
Considerei-me vacinada. Ninguém nunca iria conseguir nada.
Claro que foi havendo eleições fantoches, o candidato do regime, sempre. Eu nem saía de casa.
Até que veio o 25 de Abril—e tudo mudou. Nunca me hei-de esquecer das filas e filas para se ir votar nas primeiras eleições livres.
E,claro, a partir daí, nunca deixei de votar—e ainda hoje aceito muito mal quem se abstém. Não gosta de nenhum candidato? Não interessa, vai lá e vota em branco , isso significa “quero participar nas não quero nenhum destes.” É uma presença. Não é virar as costas e assobiar para o ar.
E lá temos tido eleições, com gente boa, com gente má, com gente assim assim, mas eleições democráticas.
A partir daqui aquelas eleições de que me lembro têm apenas—e já é muito—um valor afectivo: as eleições presidenciais de 1987,onde a minha filha votou pela primeira vez; as autárquicas de 1989, onde o meu filho votou pela primeira vez ;e as legislativas de 2019 onde o meu neto votou pela primeira vez.
Nunca os influenciei em nada.
Nunca lhes perguntei em quem eles votam
Mas tenho a certeza de que votam bem.
Assim como tu!
Beijos e até mais logo.
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”