“Cheias 1967/2021”

“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”

domingo – 21 de fevereiro 2021– Cheias.

Querida avó,

Ontem “choveu que Deus a Deus” como diria a minha avó Clementina.

Mal liguei o telefone, recebi uma mensagem da Proteção Civil que dizia: ”Chuva forte e persistente nas próximas horas na região de Lisboa. Risco de inundações. Esteja atento.”

Penso em 2 coisas:

  1. Bom, se está anunciado temporal para todo o dia, pode ser que as pessoas se vejam obrigadas a estar em casa, e não prevaricar o confinamento.
  2. As mensagens da Proteção Civil não são observadas pelo Bloco de Esquerda. Caso contrário terminavam com: “ Esteja atenta/atento”.

Tomo banho e visto-me. (Confinado sim, mas sempre de banho tomado e vestido). Acho tão deprimente “pijamar” o dia inteiro. Ou estar de fato de treino… Nem para ir para o ginásio quanto mais para estar em casa!

Ligo a televisão para ver o que dizem os canais informativos.

Vejo o presidente da Câmara Municipal de Cascais, Carlos Carreiras, a informar que o município restava a registar maior pluviosidade do que nas grandes cheias de 1983. Mudo de canal, vejo que Lisboa, na saída da A5, perto da Avenida de Ceuta, uma árvore de grande porte tinha caído, levando ao corte da via. Volto a mudar de canal, e vejo estarem a falar das inundações que se fizeram sentir com mais intensidade em Algueirão Mem Martins.

Nas notícias dizem que a forte precipitação trazida pela depressão Karim não irá dar descanso durante todo o dia de sábado. Desde quando começaram a baptizar o nome das tempestades e depressões? Não era algo que só se ouvia nas noticias dos E.U.A.? Não eram apenas os furações que tinham nomes?

Credo que dia! Tão deprimente, olhar lá para fora e ver a escuridão …

Nisto, batem-me a porta. É a porteira que me vem entregar o semanário Sol.

Diz: “Estão aqui os jornais. Assim escusa de sair. Está um temporal horroroso. Deus queira que não faça desgraças. Felizmente, este ano, as barragens já estão cheias. Mas o tempo não está nas nossas mãos. Cada vez que chove assim só me lembro das cheias de 1967. O menino é muito novo. Ainda nem era nascido. Mas foi uma desgraça muito grande!”.

E lá foi a porteira escada abaixo.

Efectivamente, em 1967 eu não era nascido. Já ouvi falar muito dessas cheias. Tenho ideia de ter andado na escola com colegas, cujos pais e os avós tinham ficado desalojados por causa das cheias. Já ouvi várias entrevistas com atriz Maria João Luís, que perdeu mais do que 30 pessoas nessas inundações. Segundo a atriz “Ficou-me o trauma para sempre.”

Imagino que sim! Devem ser situações que quem passa por elas jamais esquece.

Mas quem deve ter muito para partilhar sobre essas cheias és tu, querida avó. Uma vez que és jornalista, há 60 anos, provavelmente deves ter muitas memórias desses dias fatídicos.

Conta-me tudo.

Sei que odeias dias tristes como o que está hoje. Pensamento positivo! Já sabes que como diz o ditado “Depois da tempestade, vem a bonança”.

Beijos.

Querido neto,

Nem me fales em cheias…

Vamos esquecer no instante as imagens que ontem vimos na televisão sobre as cheias.

Claro que todas as cheias são terríveis.

Mas vai passar muito tempo antes que eu possa esquecer as grandes cheias de Albufeira, em 2015, e sobretudo as de 1967.  Que não aconteceram “porque Deus se zangou,” como um ministro, em Albufeira, tentou explicar—mas porque era enorme o desordenamento paisagístico, a ocupação do litoral, a drenagem das ribeiras, as construções em leitos de cheias.

Mas as maiores de todas foram as de Novembro de 1967, quando Lisboa foi assolada por chuvas torrenciais que provocaram das maiores cheias de que há memória.

Em Novembro de 1967 eu tinha 24 anos, e estava a descobrir essa  extraordinária aventura do jornalismo.

E de repente entrava-me pelos olhos dentro uma catástrofe que tinha a ver com miséria, com um completo desrespeito pelas leis naturais, com um território perfeitamente desordenado e caótico –  e com uma censura tão cerrada que nos queria impedir de dizer sobre isto uma palavra que fosse.

Nas cheias de 1967, morreram 700 pessoas.

Nas cheias de 1967 aldeias inteiras, na periferia de Lisboa, desapareceram do mapa.

A aldeia de Quintas foi uma delas: eu estava no que ainda dias antes tinha sido um lugar povoado – e que agora, diante dos meus olhos, era apenas um lamaçal a perder de vista.

As casas, as ruas, tudo tinha sido levado pela violência das águas. Enfiávamos as mãos naquele mar viscoso e cinzento, e as nossas mãos vinham carregadas de animais mortos.

Os jornalistas tentavam a todo o custo saber os nomes de quem tinha morrido, para contrapor às informações oficiais que garantiam que não tinha morrido ninguém, ou muito poucos.

Era num tempo em que ainda nem se sonhava com telemóveis. E quanto a telefones, apenas uma cabine pública funcionava e por aí se iam transmitindo as notícias para as redacções.

E foi então que a censura começou a perceber que seria perigoso deixar que as pessoas soubessem a dimensão exacta do que estava a acontecer.

Porque essa seria a prova da miséria que existia mesmo às portas de Lisboa, das terríveis condições em que muita gente vivia, com casas de construção tão precária que eram incapazes de aguentar o embate das águas, gente amontoada em bairros clandestinos erguidos em ribeiras e leitos de cheia. Porque as cheias quase não tinham atingido locais como Cascais e Estoril…

O que estava a acontecer era a prova da miséria que alastrava no país – e isso a ditadura não permitia que fosse conhecido.

E a censura carregou com mão de ferro, cortando notícias, distorcendo informações, impedindo os números certos de serem divulgados: o meu amigo e camarada de profissão João Paulo Guerra, então a trabalhar no Rádio Clube Português, recebeu a meio da tarde uma chamada dos serviços da censura dizendo

“A partir desta hora, não morre mais ninguém”

Não éramos só nós, os jornalistas portugueses, que estávamos ali. Havia muitos jornalistas estrangeiros, que nem estavam bem a perceber o que se passava. Nessa altura, eu e o meu camarada de redacção Fernando Assis Pacheco ainda tínhamos o nosso alemão fresco de um curso de Germânicas acabado de tirar. Agarrámos num jornalista alemão, da revista “Quick”, e contámos-lhe tudo. O homem fez um brilhante artigo na revista—e a Pide pô-lo na fronteira e aos outros estrangeiros que cá estavam.

Para além dos jornalistas  e de toda a gente que acorreu a ajudar, os estudantes universitários –sobretudo os que pertenciam ao CASU  (“Centro de Assistência Social Universitária”–acorreram em massa.

 Tenho a certeza absoluta de que essas cheias de 1967 foram, para muitos deles, a revelação da verdadeira face do país em que vivíamos.

Hoje os tempos são outros, claro.

Mas por vezes estas cheias ainda são a prova de que, nalguns sítios, ainda se continua a desrespeitar a natureza, ainda é muito fraca a limpeza de ruas  e sarjetas.

E no litoral a situação também não é melhor: continuamente se rouba espaço ao mar–e “aquilo que ao mar se rouba, o mar vem sempre buscar”, como ,há muitos anos, me disse um pescador de Buarcos.

Para ti, a cheias de 1967 podem parecer-te que foram na Pré-História.

Para mim, foram ontem.

E não tenho a certeza se algumas das entidades responsáveis terão aprendido a lição.

Cuida-te meu neto. Protege-te. Está bom é para estar em casa!

Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”