“Mala de Cartão”

“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”

segunda-feira – 22 de fevereiro 2021

Bom dia querida avó,

Desde que os ginásios fecharam tenho ido correr diariamente para o Parque da Bela Vista.

Às 9h estou de volta a casa, pronto para ficar confinado a trabalhar o dia inteiro.

Hoje, ia eu a entrar no meu prédio, diz-me a porteira:

– Bom dia. Ver se esta semana a chuva acalma. Estou fartinha de tanta chuva. Passo o dia inteiro a limpar a entrada do prédio.

Ia a dizer-lhe que a entendo perfeitamente, mas nem me deixa falar:

-Ninguém sonha em ser porteira quando se é jovem. Mas foi o que me calhou! Estive muitos anos em Paris . E lá a única coisa que podíamos fazer era ser porteiras.. Mas olhe, voltei para Lisboa e continuo a fazer mais do mesmo. Não vejo a hora de me reformar!

Mesmo de máscara, tento abrir a boca , mas a D.Lurdes não me deixa falar. Limito-me a acenar a cabeça ,concordando com o que diz. Fui abrir a caixa do correio ,e ela sempre  falar

– Hoje a Linda de Suza faz 73 anos. Que será feito dela?

(Mas quem será a Linda de Suza? Raio de nome. Mas ela não me deixa tempo para perguntar)

– O menino é muito novo…

(adoro que ela me diga isto…)

–…nem deve saber quem é a Linda de Suza!  Antes do meu querido Tony Carreira (coitadinho, tive tanta pena dele agora…) ser o emigrante mais famoso de Portugal, ainda ele nem trabalhava na fábrica das salsichas, já nós emigrantes em França tínhamos a Linda de Suza . Já há anos que não  se ouve falar dela, mas na época , foi uma das cantoras  portuguesas mais famosas em França. Ficou para sempre reconhecida pela sua mala de cartão. Tantas vezes que a vi, quando ela cantava para os emigrantes

Suspira, e continua:

– Hoje é tudo muito fácil. Os meninos tiram cursos superiores, pagos pelos paizinhos, não querem estar em Portugal, pegam no avião e vão viver para outros países. Mas no meu tempo… muitos íamos para França, para fugir à miséria e à ditadura de Portugal. Ficávamos nos biddon-villes, bairros miseráveis, piores que os nossos bairros de lata na altura. E trabalho, só como porteiras das madames, e era um pau…Olhe, há anos vi o filme ”Gaiola Dourada” . Gostei, mas “dourou” muito a nossa vida…Aquela porteira vivia numa óptima casa, não tinha problemas de dinheiro, a senhoria gostava muito dela…No meu tempo, não era nada daquilo…E para lá chegarmos, muitos de nós tínhamos de ir a salto, com um passador que nos levava ,e a quem tínhamos de pagar, claro.

 E aí,  consigo dizer :

-Como assim?

-Então, tínhamos de atravessar as fronteiras na calada da noite, a pé, por terríveis caminhos clandestinos, e sempre com medo da polícia. Foram muitos os que morreram nesta perigosa caminhada .

Pensei que tinha terminado, já me preparava para subir até ao meu andar e ver a correspondência—mas não.

 – Ah, e estava eu a falar da Linda de Suza…

      (Oh,meu Deus…)

–…esta alentejana corajosa veio a transformar-se num  símbolo da liberdade  ..Atravessou a fronteira “a salto” com uma criança nos braços e sem dinheiro, mas graças à voz que tinha,  passados uns anos esgotava plateias no Olympia de Paris e conquistava milhares de admiradores. E o que para mim é muito importante é que…

 Chega-se ao pé de mim, tive de lhe fazer ver que não estávamos a 2 metros de distância, e então lá voltou para o degrau onde estava, e disse, muito baixinho:

–Ao contrario de muitas madames que vivem aqui no prédio, nunca negou as suas origens, mantendo nas letras das canções a história da sua vida e do seu país natal. Tenho que ligar à minha prima Olinda para ver se sabe alguma coisa . A minha prima ainda continua a viver por lá. Dever te

Pega no balde, na vassoura, na esfregona… e desaparece (finalmente!)

escada abaixo.

Enquanto subo as escadas , ainda a ouço cantar:

“Duas malas de cartão numa terra de França
Um Português deixou assim seu Portugal
Como tantos outros, ele não perdeu a esperança
O Português que deixou seu Portugal…

E pronto, assim começou o meu dia, querida avó.

A D. Lurdes não me deixou falar. Mas lembro-me de, quando era miúdo, ver muitas vezes a Linda de Suza na televisão.

Agora me lembro, tu também viveste em Paris nessa época. Lembras-te  disto?

Espero que tenhas um bom dia.

Se quiseres recordar as músicas da Linda de Suza clica aqui: Mala de Cartão e outras músicas

Bjs e cuida-te.

Querido neto,

A Linda de Suza!!! De quem te foste lembrar! Claro que me recordo dela, mas eu já não estava em Paris quando ela chegou, com a sua mala de cartão…

Se encontrares a tua porteira, diz-lhe que ela ela ainda vive por lá—mas não sei onde—e está praticamente na miséria … Foi enganada por uma data de pessoas e hoje penso que tem uma reforma de 400 euros….Para quem encheu Olympias e Lidos e tudo o mais…

Pois olha, eu quando fui para Paris, nem mala de cartão levava. Ia a fugir da pátria, da família, do namorado, de tudo. Enfiei só umas peças de roupa e o mínimo de que precisava para dentro de um saco—e o último livro do Herberto Helder.

Cheguei a Orly e lembro-me de me sentar num banco, sem saber o que fazer da minha vida. O jeito que me tinha dado um telemóvel, naquela altura… Apanhei o metro, que me deixou no centro de Paris. E agora? Onde é que eu ia ficar? Lembrei-me então de uma prima que vivia lá exilada (a Maria Lamas, já te tenho falado nela), sabia a morada dela, e bati-lhe à porta.

E foi quem me salvou. Fui viver com ela, num pequeno quarto do hotel (sem nenhuma estrela!!), onde ela estava e, até ao fim da sua vida, nunca me perguntou por que é que eu tinha saído de casa.

Não foram tempos fáceis, no início. Lembro-me de passar dias e dias sem falar uma única palavra de português—e é a língua que nos prende à Pátria. Então à noite, no meu quarto, andava de cá para lá e de lá para cá, a ler em voz alta poemas do Herberto Helder.

Eu trabalhava então no Diário Popular e fiquei como correspondente (mas quase tudo era cortado pela censura…) e ainda escrevia uns textos para o “Lusitano”, o jornal dos emigrantes.

Claro que o dinheiro não abundava….Mas a dona do hotel—a Madame Sauvage—dava-nos uma opção: nas semanas em que não tínhamos dinheiro, éramos nós que arrumávamos os quartos todos do hotel. Os quartos não eram muitos e acontecia muitas vezes, quando queríamos despachar serviço, batermos às portas muito cedo. E na maior parte dos casos a resposta lá de dentro era “deixa, eu arrumo!”  Bons tempos.

Para lá de tudo isso, eu costumo sempre dizer—tu se calhar já estás farto de ouvir isto- que aqueles anos em Paris foram a minha verdadeira Universidade… A minha prima era conhecida em toda a parte. E o meu quarto, apesar de pequeno, era o maior do hotel. Assim, quando ela recebia visitas de amigos, iam todos para o meu quarto. Foi assim que me tornei amiga do Pablo Neruda, do Jorge Amado e da Zélia Gattai (até cheguei a apresentar um livro dela ), do Jorge Semprún, etc, e  de muitos outros que depois reencontrei em Portugal: a Teresa Rita Lopes, o António José Saraiva, o Jorge Reis (autor de um grande romance de que hoje, infelizmente ,ninguém fala, “Matai-vos Uns aos Outros.”)

O Jorge também trabalhava na RTF, onde enfiava aquela música toda de que os imigrantes gostavam (mas, pelo meio, lá entrava um Luís Cília ou um José Mário Branco) e  de vez em quando fazia visitas guiadas a alguns emigrantes, para lhes ensinar alguma coisa. E era certo e sabido que, ao chegarem junto do túmulo de Napoleão a pergunta era sempre “ó Sr. Jorge, o Napoleão foi antes ou depois do De Gaulle?”

Pronto, já aí tens muita coisa sobre Paris.

Os amores e desamores, e o Maio de 68 ficam para outra vez.

E tens de me mandar parar: já sabes que, quando falo de Paris, nunca mais me calo.

E ainda nem quero acreditar que, se não fosse o vírus, era lá que eu devia estar agora.

Assim que tudo isto terminar, havemos de combinar uma viagem a Paris.

Beijinhos e cuida-te.

Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”