“Diário de uma avó e de um neto…Desconfinados”
sexta-feira, 23 de abril 2021

Querida avó,
Se fosse viva, Carmen Dolores faria hoje 97 anos. Partiu recentemente. Nessa altura não a recordámos no nosso “Diário”. Mas hoje, dia de aniversário, é um belo dia para falarmos dela. Não fôssemos nós festeiros.
Chegar praticamente aos 97 anos, com a alegria e a força de viver que a Carmen Dolores tinha, são razões para festejar.
A Cultura não ficou mais pobre com a sua partida. A vida é isto mesmo. A cultura ficaria mais pobre se pessoas como Carmen Dolores não tivessem existido.
Estreou-se no Teatro em 1945, na companhia “Os Comediantes de Lisboa”. Passou pelo palco do Teatro Nacional D. Maria II, onde interpretou a peça “Frei Luís de Sousa”, de Almeida Garrett.
No cinema participou em filmes como “A Mulher do Próximo” ou “Balada da Praia dos Cães”.
Carmen Dolores entrou, também, em várias novelas, entre as quais se destacam “Passerelle”, “A Banqueira do Povo” ou “A Lenda da Garça”.
Em 2018 a atriz foi distinguida “Grande Oficial da Ordem de Mérito”. Recebeu o Prémio Carreira dois anos antes nos Prémios Sophia da Academia Portuguesa das Artes e Ciências Cinematográficas.
Muitos quiseram ser atores por verem o profissionalismo do seu trabalho, o amor e dedicação à arte.
Antes da pandemia, estive na Casa do Artista com a Manuela Maria e falámos ao telefone (em alta voz) com a Carmen Dolores. Jamais irei esquecer a conversa com a atriz, que acima de tudo era uma mulher discreta, reservada, de aparência conservadora (aristocrática), que falava num tom de voz ímpar, não fosse ela uma grande declamadora. Recordo-me de a ver no palco do Teatro Aberto. Quando subia ao palco, transformava-se por completo na personagem que lhe cabia desempenhar. Na vida, como no palco, entregava-se de corpo inteiro, uma garra e um entusiasmo como só os grandes atores conseguem fazê-lo.
Carmen Dolores, que nutria um carinho muito grande por Cascais e participou em várias produções do TEC – Teatro Experimental de Cascais, dirigidas e encenadas por Carlos Avilez – desde o dia 27 de março de 2021 (Dia Mundial do Teatro), passou a fazer parte da toponímia do concelho de Cascais. A Rua Carmen Dolores é no consenso geral uma justíssima homenagem de uma comunidade que – como o país – nunca a esquecerá. Podemos encontrar esta rua em Birre.
O pano do palco pode ter descido para Carmen Dolores. Mas depende de nós mantê-la viva nas nossas memórias.
Do tal telefonema, ainda quero partilhar contigo uma frase: “ Sempre preferi papéis de mulheres perversas, bem diferentes da minha própria natureza”.
Este telefonema aconteceu pois, como sabes, gostaríamos muito de contar com o testemunho da Carmen Dolores para o site Retratos Contados. A Carmen retirou-se do palco alguns anos antes e não dava entrevistas.
A conversa não presencial, e não gravada, não foi uma entrevista.
Mas foi uma partilha de conhecimento que jamais irei esquecer.
Partiu recentemente, de forma serena como sempre foi em vida.
A escrever mais um dos seus lindos livros de memórias.
Quando levas a 2º dose da vacina?
Cuida-te.
Bjs
Querido neto,
Comecemos pelo fim: vou levar a 2ª dose da vacina no dia 10 de Maio. Depois conto-te tudo.
Mas vamos lá à Carmen Dolores.
Como sabes, gosto sempre de recordar as pessoas em alegria. Não é “ai que pena, ficámos sem elas!”, mas sim “que bom que foi tê-las tido na nossa vida”. É sempre isso que eu digo dos meus dois maridos, dos meus amigos, das pessoas que foram importantes na minha vida.
E a Carmen foi uma dessas pessoas.
A primeira vez que a vi foi no Teatro Nacional, no “Frei Luís de Sousa”, teria eu uns sete ou oito anos.
Mas aí, desculpem lá, nem dei por ela. Aí, eu só tinha olhos e ouvidos para uma miúda, um pouco mais velha que eu—e que já andava pelo palco como eu adoraria andar também. Chamava-se Maria Dulce, e fazia da pequena Maria de Noronha. Sabia as suas falas todas. Também nunca perdi um espetáculo dela—e, mais tarde, ficámos amigas para o resto da vida.
Mas voltemos à Carmen –que, para lá de ter feito teatro radiofónico, programas de poesia, teatro, cinema, e televisão, também escreveu livros e gravou discos. E que teve a grande inteligência de ficar sempre perto da família (esteve sete anos em Paris a acompanhar o marido), e de saber retirar-se dos palcos quando achou que era a altura certa.
Não vou estar aqui a enumerar todas as peças que fez—acho que as vi todas e gostei de todas—mas aquelas que mais me tocaram, por motivos até um pouco palermas…
Em 1959 lembro-me de a ver numa peça chamada “O Fim do Caminho”. Não me lembro de nada, só sei que à saída havia livros à venda com a peça, que a comprei, que a sabia de cor e que cantava a canção com que ela acabava.
Depois fui vê-la em 1984 no Teatro Aberto, em “Confissões Numa Esplanada de Verão”, com Mário Viegas, Francisco Pestana e já não me lembro quem mais. A meio de uma cena, um dos atores dá um empurrão numa cadeira—e a cadeira cai com grande estrondo. Olham todos uns para os outros e ele lá vai pôr a cadeira no lugar. Seria mesmo da peça, ou teria acontecido por acaso?
E lá fui eu ver a peça outra vez. E a cena repetia-se. Pronto, era porque fazia mesmo parte da peça, olha que giro. Só muito mais tarde o Francisco Pestana me disse que não, mas como tinha resultado bem, tinham-na incluído.
No fim do ano seguinte ela representava a peça “Virgínia” (sobre a vida de Virgínia Woolf) no Teatro Nacional. Eu tinha-me atrasado, vou hoje, vou amanhã–e de repente a peça estava no seu último dia. Só que o último dia era 31 de Dezembro. Saí do teatro eram onze e meia da noite. Vá lá que apanhei logo táxi, e eu só pedia “depressa, mais depressa!” porque estava a ver que ia perder a passagem de ano—com o marido e os filhos em casa à minha espera. O taxista parecia que voava. Passou sinais verdes, amarelos e vermelhos—e lá entrei em casa cinco minutos antes da festa. Acompanhada pelo taxista, que também bebeu uma taça de champanhe.
E a última peça que quero referir foi exatamente a peça em que ela se despediu dos palcos: “Copenhague”, em 2005, com Paulo Pires.
Acho que passei a peça toda de boca aberta. O texto era complicadíssimo (falava de física nuclear, nos tempos nazis na Alemanha), enorme, sem intervalo, e aquelas duas almas sempre em cena, a falarem, a falarem (sem ponto, evidentemente!) sem nunca se enganarem.
Lembro-me que, à saída, a maior parte do público também comentava o mesmo.
(E confesso que a minha admiração pelo Paulo Pires subiu em flecha)
Em relação à Carmen, acho que foi uma retirada dos palcos em dignidade e beleza.
E pronto, agora que os café reabriram, vou para o café. Nem te digo quantos já bebi hoje…
Bjs
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto … Desconfinados”