“A MALA DA ALICE / UM DESCONTO JUSTO”

A MALA DA ALICE / UM DESCONTO JUSTO

Crónica publicada no Jornal de Mafra

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A MALA DA ALICE / UM DESCONTO JUSTO

 

Apesar de todas as maravilhas electrónicas que fazem tudo, a minha mala ainda anda cheia de coisas que, para a maior parte das pessoas, são já peças de museu.

Agendas.

De papel mesmo, e capa dura.

Aquela onde tenho os meus dias todos marcados até princípios de 2017; e aquela onde assento todos os telefones e moradas e mails  –e o que eu me rio quando algum amigo me telefona, desesperado  porque o telemóvel lhe “comeu” todos os endereços.

“Tu, que tens os telefones de toda a gente, diz-me lá…” – e lá ficam a tomar nota.

Mas, para lá das agendas, trago sempre um calendário.

Normalmente é um amigo coleccionador que mos fornece porque eu, a bem dizer, nem sei onde é que eles agora se vendem.

Até ao ano passado, sabia: na tabacaria da D. Rita.

Mas a tabacaria da D. Rita faz agora um ano que se transformou numa agência imobiliária .

Felizmente que, no ano passado, quando ainda ninguém no bairro pensava que a D.Rita teria de fechar as portas, ela ainda teve tempo de atender uma senhora de muita idade que entrou e perguntou:

–Tem calendários?

A D. Rita nem estava a perceber, há que tempos ninguém lhe pedia calendários, e ainda perguntou se era para consultar ou para comprar mesmo, mas a voz da senhora não admitia dúvidas, “claro que é para comprar, para que é que eu havia de querer consultar um calendário a meio da tarde?”

A D. Rita lá deu uma vista de olhos pela loja, onde raio teria ela enfiado os calendários, Janeiro tinha começado há pouco, era bom que os tivesse mais à mão.

Lá os descobriu no cimo de tudo, devia ter sido o marido a atirá-los para lá, esticou-se e agarrou num deles.

–Pronto, aí o tem. São dois euros.

A senhora deu uma gargalhada.

–Você deve pensar que eu estou maluca…Dar dois euros por esta porcaria?

A D. Rita olhou bem para ela, uma rede finíssima por sobre o cabelo todo branco, quilos de pó de arroz sobre as rugas, casaco a imitar pele, decerto mais por falta de dinheiro que por convicções ecológicas, e lá se vai defendendo, dizendo que é um calendário muito resistente, plastificado, com uma bonita ilustração— “até tem o Papa Francisco! E além disso está dividido em quatro, vê?,chega até  2018, isto a bem dizer até são quatro calendários num só! Está a ver? Quatro calendários! Fica-lhe a 50 cêntimos cada um! A bem dizer, até poupa!”

Lembro-me de estar ao canto da tabacaria, e de começar a rir porque aquela conversa toda parecia um anúncio de champô, ou creme de banho, ou detergente, dois em um, mas a senhora olhou para mim e não achou graça.

— Olhe bem para a minha cara– disse ela.

E tanto eu como a D. Rita obedecemos. Como nenhuma de nós dissesse nada, ali feitas parvas, ela perguntou:

— Que idade é que me dão?

Continuámos em silêncio

— Já fiz 90 – disse ela.

Aí a D. Rita desatou naquela conversa idiota, “ai mas nem parece nada!, eu sou muito mais nova que a senhora e ando para aqui toda torta, com a minha ciática que dá cabo de mim, e então quando vem o inverno a bronquite não me larga, e a sinusite é…

A senhora cortou-lhe o rol de desgraças:

— Mais me ajuda. Se você, que é nova, já está assim, imagine o que seria de mim se durasse mais quatro anos! Claro que não duro! E vocês acham que vou dar dinheiro por uma coisa que quase de certeza não vou usar? Para que quero eu um calendário que dure quatro anos, se de certeza eu não vou durar mais quatro anos?

A D. Rita já não sabia que mais havia de dizer

–Então fazemos assim – disse a senhora – eu levo o calendário se me fizer um desconto.

–Um desconto? Mas o calendário custa dois euros! E serve para quatro anos! Praticamente fica a 50 cêntimos cada…

–Eu ainda sei fazer contas. Mas quero um desconto. Um desconto pelos calendários que não vou ter tempo de usar.

Parou por momentos e depois murmurou:

— É justo, não é?

A D. Rita olhou para ela, e depois para o calendário, que afinal eram quatro, e de novo para ela, esperando que, apesar da ciática e da bronquite, o ano de 2018 as encontrasse ali de novo, entre jornais, revistas, papelada – sem poder imaginar que, dali a uns meses, viria uma agência imobiliária fechar-lhe a porta e empurrá-la para novas paragens.

–Justíssimo – disse, passando-lhe o calendário para as mãos, e recebendo os 50 cêntimos da compra.

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A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.

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