“ODEIO O CARNAVAL“
Crónica publicada no Jornal de Mafra
ODEIO O CARNAVAL
Odeio o carnaval. Sim, eu sei, já passou, mas isto é um trauma de infância, e esses traumas nunca passam.
As minhas velhas tias viviam o ano inteiro (ou quase…) a pensar no Carnaval. (Se fossem brasileiras e pertencessem a alguma escola de samba não seriam mais dedicadas à causa…)
Assim, durante meses enfiavam-se dias e dias nas salas do Museu de Arte Antiga, munidas de papel e lápis, e iam desenhando os fatos das rainhas, princesas, damas da corte que povoavam os quadros.
Depois de concluído este longo trabalho (o que, tenho de reconhecer, lhes deu uma certa dose de cultura artística…) debruçavam-se sobre as folhas de papel cheias de desenho, meditavam longamente—e lá escolhiam a “dama antiga” para aquele Carnaval.
Seguiam-se depois os dias complicados com a Menina Lucinda, que era a costureira lá de casa, e quem tinha de passar à prática o que elas lhe davam em teoria, ou seja: ir com elas às lojas da Baixa escolher os materiais, e depois passar dias e dias e dias a costurar para tudo ficar rigorosamente igual ao quadro.
Eu ia vestindo e despindo aquilo, nas provas quase diárias, e agora desce a baínha, e agora sobe, e agora falta uma prega aqui, e agora um folho acolá, e agora aperta, e agora alarga.
Depois havia ainda o pormenor da cabeleira. Porque, evidentemente, uma dama antiga que se prezasse, não usava cabelo à Beatriz Costa, como eu.
Então lá passávamos mais uns dias numa casa que alugava cabeleiras, num frenesim de tira e põe, e os desenhos sempre nas mãos para escolher a que se aproximasse mais do original. À distância de quase 70 anos, já não me lembro como aquilo se fazia, mas nunca me esqueci que doía, porque era preciso espetar muitos ganchos na minha pobre cabeça para aquilo não cair nem sequer se entortar ligeiramente.
Quando finalmente chegava a terça feira de Carnaval lá marchávamos para o Cinema Politeama, que organizava sempre desfiles de criancinhas mascaradas, com a possibilidade de belos prémios aos vencedores. Quer dizer: o prémio maior era uma frisa para todas as estreias do cinema durante um ano! Claro que o prémio era um descarado piscar de olhos às famílias das criancinhas para que se empenhassem a sério—pois as criancinhas não iam à noite ao cinema, e tinham de se contentar com uma bola de borracha, que vinha com a frisa, só para não se dizer que as pobres ficavam a chuchar no dedo.
O desfile era no final de tudo. Ou seja: havia carradas de desenhos animados, longuíssimos intervalos onde toda a miudagem, aos urros, se empenhava numa verdadeira batalha campal, atirando saquinhos cheios de serradura à cabeça uns dos outros, e gatinhando desesperadamente entre as cadeiras para apanhar os que se iam perdendo na refrega; e mais desenhos animados, e mais intervalos, e a ida ao bar para recuperar as forças.
Mesmo, mesmo no fim (o que significava várias horas depois) lá se anunciava o desfile.
E eu — que durante essas horas todas me roía de inveja dos outros miúdos, não mascarados, porque não me podia mexer (“está quieta, não amachuques o fato!”), nem podia virar a cabeça (“está quieta, olha a cabeleira que fica torta!”) nem sequer tinha direito a visita ao bar (“nem penses, olha que o bâton fica esborratado!” —lá subia ao palco, no meio de minhotas, varinas, espanholas, magalas, e por aí fora.
Desfilávamos em fila, as pessoas davam muitas palmas, e depois havia um júri que escolhia. Acho que era assim.
Houve um ano em que as tias decidiram meter também o meu irmão mais novo ao barulho, e mascararam-no de “bailarino mexicano” (o pobre, coitadinho, tem um trauma até hoje…).Mas esse desapareceu para ir brincar e, na altura do desfile, nunca mais saía do palco: “e agora um bailarino mexicano!”, dizia o apresentador, e ele dava meia volta e voltava a pôr-se no fim da fila e, daí a uns instantes, o apresentador: “e agora mais um bailarino mexicano!”, e aquilo não acabava nunca mais—até que as tias tinham de o ir buscar ao palco por um braço , e era uma vergonha.
E fiquei só eu.
E eu ganhava sempre. Todos os Carnavais.
Durante anos e anos (acho que me mascararam até aos meus 9 anos, quando já estava grande demais para aquelas fantochadas…), as minhas velhas tias nunca pagaram para ir ao cinema.
Se isto não se chama exploração do trabalho infantil…não sei que outro nome lhe hei-de chamar.
Odeio o Carnaval.
Tenho dito.
A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.
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