A minha avó materna cresceu numa quinta, vivendo uma vida modesta, simples e feliz, e demonstrando sempre muita força de vontade para conquistar novas metas. Sonhava sempre por dar um passeio de motocicleta. Casou-se, tendo dois filhos, o primogénito que se licenciou como engenheiro civil, e a minha mãe, que se formou como professora. A minha avó ficou viúva bastante cedo na sua vida, quando a minha mãe ainda era jovem, casando-se uma segunda vez com um homem também muito amável que trabalhava diligentemente nos comboios com o sistema nacional de correios. Juntos, já na fase sénior da sua vida conjunta, mudaram-se para Lancaster County, Pensilvânia, nos EUA, uma zona agrícola onde abundam campos de milho, trigo, soja, tabaco e outros produtos da terra cultivados pela comunidade Amish e pelos demais agricultores desta região tão abundantemente verde.
Um dia belo, um homem simpático da aldeia concedeu o desejo da minha avó, já quase no fim da sua vida. Deu-lhe boleia na sua motocicleta, um passeio puramente por gosto. Bem imagino os caracóis dos seus cabelos brancos esmagados pelo capacete, sem capacidade para restringir as suas gargalhadas. Deve ter sido uma aventura maravilhosa, mas eu não assisti ao evento porque esses campos de agricultura eram, para mim, uma terra estrangeira no outro lado do oceano.
Entretanto, eu nasci em Lisboa, Portugal, onde os meus pais viveram durante décadas. Vivemos por alguns meses na Linda-A-Velha, e quando eu tinha dois anos, mudámos para a Póvoa de Stº Adrião, nos arredores de Lisboa. Fui criada a escrever cartas à mão para a minha avó, agradecendo os mimos que ela me enviava pelos correios, caixas sempre bem embaladas pelo meu avô. Ela era uma mulher bastante baixa mas cheia de gosto pela vida, uma mulher que não deixava que a distância nos dividisse. Os seus olhos suaves eram da cor do oceano que nos separava, e o seu amor transmitia-se de uma maneira transatlântica. Nas minhas cartinhas, eu contava-lhe acerca das minhas amizades, dos meus estudos, das minhas andanças por terras portuguesas. No ano 2000, fiz uma visita aos EUA, a última vez que vi a minha querida avó em vida. Os anos já lhe pesavam, mas o seu espírito persistia com carinho, juntamente com a sua fé sólida em Deus. Eu nem sei quantos dos meus êxitos na vida são o fruto das suas orações.
No dia 11 de Setembro de 2001, eu estava sentada à mesa de jantar na Póvoa de Stº Adrião, compondo mais uma cartinha para a minha avó, quando recebi um telefonema de que a primeira torre em Nova Iorque tinha caído. Liguei a televisão, e vi ao vivo o desastre da segunda torre, preocupada com o bem-estar do meu irmão, que vivia naquela cidade. Fui a pé aos correios lá na vila para enviar o envelope à minha avó, duvidando se a minha carta pudesse mesmo chegar, devido à tragédia que ocorria a cada segundo no outro lado do oceano. Após largas horas, finalmente, recebi uma chamada de um primo, trazendo o alívio de que, sim, o meu irmão estava ileso.
Dois meses mais tarde, chegou outro telefonema, este durante a noite e mais triste. A minha avó tinha falecido. Na altura, não pude assistir ao seu funeral, estando a cumprir um contrato temporário na Torre do Tombo em Lisboa. Após uma série de eventos na minha vida pessoal e profissional, tomei a difícil decisão de emigrar para os EUA, deixando com muita tristeza o solo lusitano. As saudades persistem desde então, juntamente com as saudades da minha avó.
Quando vim para os EUA em Abril de 2002, sem um lugar onde pousar a minha cabeça, sem saber bem qual o melhor sítio para tentar fazer uma vida de emigrante, comecei por Lancaster County, Pensilvânia. Era uma zona que, ao menos, eu já conhecia de passagem e que não ficava muito longe do meu querido irmão. Procurei um emprego, e sei que foi Deus quem me abriu as portas. Quase de imediato, fui contratada por um teatro musical, onde trabalho desde então, começando pelos bastidores e tendo agora o cargo de Escritora Técnica e Especialista de Pesquisa. O que me faltava era uma casa, e respondi a um anúncio que vi pendurado num quadro na parede de uma igreja local. Afinal, após uma breve chamada telefónica, entendi que se tratava de uma casinha onde os senhorios eram um casal que morava logo aí ao lado numa vivenda histórica. A dona da casa era tão simpática, logo naquela primeira conversa. Sem me conhecerem, receberam-me como uma filha.
Vivo lá desde então, num pequeno apartamento onde eu tenho tudo o que eu preciso, um espacinho aconchegado onde posso viver e descansar e sonhar. O que eu não sabia antes, era que o pai da senhoria era o mesmo homem simpático que tinha dado boleia à minha avó, uma estranha coincidência divina. A sintonia de gerações perdura, e a simpatia também. No fim de semana passado, os senhorios despejaram-me temporariamente por dois dias porque ele queria substituir a varanda de madeira que dá acesso ao meu apartamento no primeiro andar, tirando a outra varanda que estava bem raquítica. Agora já tenho os pés bem firmados, e estou grata. A motocicleta do pai da senhoria ainda está na garagem, e o legado da minha avó ainda está comigo. Não posso escrever uma cartinha para a minha avó, mas sei que ela também estaria contente.