“Um País Pequeno”

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“Um País Pequeno”

Crónica publicada no Jornal de Mafra

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UM PAÍS PEQUENINO

ALICE VIEIRA

Entro no avião, deixo-me cair no lugar que dá para a janela, vou encostar a cabeça ao vidro e dormir a viagem toda, cansada de dez dias seguidos por Berkeley e Santa Bárbara, a entrar e sair de universidades e bibliotecas e, por muito que me custe admitir, já não tenho propriamente 20 anos.

Foi isto mesmo que disse ao jovem que me veio acompanhar ao aeroporto, e ele atirou-me logo com o habitual “ o que interessa é a juventude de espírito”, coisa em que, evidentemente, só os jovens é que acreditam. Sorri e lembrei-me da minha prima Maria Lamas que, assim que lhe diziam isto, respondia invariavelmente, “o pior é que a juventude de espírito não me ajuda a subir escadas”.

“Qualquer dia também estou a dizer o mesmo”, penso, enquanto ponho o cinto de segurança , e tiro o livro da mala, embora saiba que nem o vou abrir. Sinto-me embalada por aquele bruaá característico dos aviões, choros de crianças, risos, línguas várias, o barulho dos motores, estou mesmo quase a fechar os olhos.

É então que a passageira do lado me pergunta, num inglês arrastadamente americano, se sou mesmo de Portugal ou se vou de visita.

É uma velhota loira platinada, a pele esticada de botox ou de outra coisa semelhante, olhos piscos dos muitos dry-martinis ou gin-tónicos que já deve ter bebido. Deve ser das que vivem na Califórnia, entre praias, palmeiras, t-shirts de papagaios, e velhas missões mexicanas transformadas em hotéis.

Digo-lhe que sim, que sou portuguesa, que vim fazer umas conferências e que regresso a casa, esperando que a conversa fique por ali. Dormir é a minha única ambição neste momento. Por isso mesmo tinha pedido, ao fazer o check-in no aeroporto, o lugar da janela.

Mas a americana não se cala e, sem eu perguntar nada, vai dizendo que não gosta de sair de Santa Mónica, mas a filha casou com um português, e decidiram ir morar para este fim do mundo (“sorry!”, acrescenta logo), e por isso decidiu-se a apanhar o avião. Para ver como é Portugal. Porque de Portugal sabe apenas que “é um país muito, muito pequenino, não é verdade?”

Estive mesmo para lhe dizer que era ainda mais pequenino que Santa Mónica, mas tive medo que o sentido de humor californiano não chegasse até aí, ou que os vapores do álcool a impedissem de racionar, e contentei-me em acenar com a cabeça e a concordar.

A velhota vai embalada na sua própria conversa, a filha também lhe disse isso mesmo, embora não se falem muito, e por isso ela tem tanta curiosidade, ela nunca esteve num país pequenino, não sabe como é, como lá se vive, nunca saiu dos EUA que, evidentemente, não conhece totalmente porque esses sim são um país muito, muito grande.

De repente, encara-me com os olhos ainda mais piscos, e pergunta: “Como é viver num país onde todos se conhecem? How nice, how nice!…Sim, porque vocês devem conhecer-se todos, nas ruas, nas lojas, toda a gente a conhecer toda a gente, é sobretudo isso que me interessa descobrir, como é não haver desconhecidos!! How nice, how nice…!”

Tenho vontade de lhe dizer que ainda o país dela não era país e já nós andávamos a fazer pela vida por terra e mar, conhecidos e desconhecidos – mas desisto. Para quê. É agora que vou mesmo dormir, não aguento mais, o patriotismo que fique para depois.

Só acordo no fim da aterragem.

Acontece que há duas funcionárias em terra que me reconhecem, e me vêm dar beijinhos e abraços – enquanto a velhota passa por nós e desaparece na porta de saída, abanando a cabeça e repetindo “how nice, how nice!…”

Para quê tirar-lhe as ilusões.

 

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A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.

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