“Uma Borracha na Cabeça”

“Diário de uma avó e de um neto”

Quarta-feira, 30 de junho 2021

Querida avó,

Como estás?

Com todas as medidas de segurança necessárias voltei ao cinema.

Depois de meses a fio a ver filmes no ecrã da televisão, que bom foi voltar a estar numa sala de cinema.

A escolha não podia ter sido melhor! Fui ver “O Pai”.

É um filme triste. Mas “obrigatório” para todos.

Como deves estar recordada, a convite do teu grande amigo João Lourenço, fomos assistir à peça com o mesmo nome ao Teatro Aberto. Penso que em finais de 2016. Interpretada, entre outros, pelo “Pai” João Perry e pela “Filha” Ana Guiomar.

(Havemos de falar (noutras núpcias…) do papel da Ana Guiomar na peça “Toda a Cidade Ardia”.)

Mas como estava a contar-te, “O Pai”, é uma peça do jovem dramaturgo francês Florian Zeller, que depois do sucesso obtido no teatro chega agora ao cinema.

É uma peça escrita na perspectiva de um homem que envelhece e se vê confrontado com um quotidiano em mutação. A sua família, a sua casa, a sua vida e as suas memórias.

No filme Anthony, papel brilhantemente desempenhado pelo actor Anthony Hopkins (que ganhou o Óscar de melhor ator com este filme), tem 81 anos de idade. Mora sozinho no seu apartamento em Londres, e recusa todos os cuidadores que a filha, Anne, (Olivia Colman) tenta impor-lhe. Para o velho senhor, consentir numa coisa dessas é assumir uma incapacidade que ele considera não ter.

Infelizmente, todos os dias ouvimos falar de casos como este.

Não sabe onde deixou o relógio e em que casa está. Suspeita que o andam a roubar e lhe querem ficar com a casa. O tempo, o lugar, as pessoas, o mundo à sua volta tornam-se cada vez mais estranhos. Quem está esquecido, confuso, errado? O pai? A filha? O genro? Os outros, que aparecem para ajudar?

Mas Anne, que em breve se mudará para Paris, precisa de saber que o pai não ficará entregue a si mesmo. Nesse processo, Anthony sente-se de tal modo pressionado que começa a duvidar de si, de Anne e da própria percepção da realidade.

Por falar neste tema, li um belíssimo livro do Rui Zink com o titulo: ”O avô tem uma borracha na cabeça”.

Esta é a história do amor incondicional entre um avô e o seu neto e a árdua luta contra a doença de Alzheimer. Escrito de forma acessível e repleto de fantásticas ilustrações, proporciona uma forma diferente de abordar a temática com os mais novos e restante família.

O que fazer quando alguém de quem gostamos nos começa a esquecer, ou começa a esquecer-se das coisas?

Deve ser desesperante! Não só para o próprio, como para toda a família.

O livro de Zink retrata a amizade entre um avô que lentamente vai perdendo as memórias e o neto inventor que se dedica a descobrir uma cura.

Através da sensibilidade de uma criança, chega-nos a lição mais importante: o amor é mais forte do que o esquecimento!

Na próxima Feira do Livro vou procurar o Rui Zink. Este tema dá um belo testemunho para os Retratos Contados.

Quando vieres a Lisboa recomendo-te vivamente que vás ver o filme.

Conhecendo-te, como conheço, sei que vais esperar que vá para “Streaming” pois não te sentes segura no cinema … 

Eu senti-me completamente seguro. Os donos das salas de cinemas é que devem estar desesperados com tantas regras e pouco público. Felizmente,  não é permitido comer pipocas (nem nada) durante o filme. Apesar de adorar pipocas, não tenho paciência para os sons emitidos pelos ruminantes no cinema.

Nem há intervalos para ninguém.

Diverte-te nessa terra à beira-mar plantada.

Bjs

Querido neto

Pelo amor de Deus, tu vai-me à Netflix, a HBO, ao Cinemax, a qualquer sítio onde passem filmes e, durante um dia inteiro—ou mais…– vê filmes dos Irmãos Marx, do Bucha e Estica, do Cantinflas (espero que saibas quem foram…) para ver se te animas um bocado e não me escreves cartas tão tristinhas como esta…

Queria também contar-te alguma coisa ligeiramente triste, para condizer, mas, a única coisa triste de que me lembro é da visita da delegada de saúde ontem à esplanada da praia, a dar ordens a toda a gente: mesas mais afastadas (as mesas já estão afastadíssimas, que o Sr. Rui tem imenso cuidado, é cá dos meus…) e só 3 pessoas em cada mesa.

“Três pessoas? Na esplanada?”

“Sim, porque como as coisas estão, melhor prevenir que remediar “.

As mesas tinham 4 cadeiras, e lá foi o Sr. Rui tirar as cadeiras a mais— enquanto ela ia até ao fim da praia multar a miudagem que lá se amontoava (aí tinha razão).

Lá se foi embora, a gente riu-se um bocado mas obedecemos, que remédio. 

E já que mencionas livros para crianças a falarem de velhos, o livro mais bonito sobre esse assunto que alguma vez li chama-se “A Manta”, escrito pela Isabel Minhós Martins e ilustrado pela Yara Kono.

É uma manta aos quadrados. Cada quadrado da manta tem uma história que só a avó sabe. E quando vai deitar os netos, não precisa de ir buscar um livro para lhes ler: basta olhar a para a manta e todas as histórias lá estão guardadas. É um pequeno livro, não sei quantas vezes já o li e emociono-me sempre (e atenção, meu neto, emocionar-se não é o mesmo que ficar triste!!).

E não é preciso os textos serem muito grandes para nos emocionarmos com eles.

Lembro-me um dia, logo a seguir ao 25 de Abril, quando foi organizado um concurso para crianças (já não me lembro por quem), em que cada uma tinha de escrever um texto sobre o que tinha sido, para ela, o 25 de Abril.

Eu pertencia ao júri, e aquilo era tudo a mesma coisa: foi o dia da nossa liberdade, foi quando acabou a ditadura, foi quando os militares nos trouxeram a democracia, etc,etc,etc… Tudo o mesmo!

E foi então que o jornalista Adelino Gomes, também membro do júri, se levantou, pegou num papel e disse:

“Oiçam só isto”

E o texto do miúdo dizia apenas:

“O 25 de Abril foi o dia em que o meu pai deixou de bater na minha mãe”.

Ficámos todos em silêncio. Aquela única frase dizia tudo sobre o 25 de Abril, não era preciso acrescentar mais nada.

E pronto, por aqui me fico. E não, ainda não entro num cinema, nem num teatro. Mas como essas coisas não existem na Ericeira, nem penso nelas.

(Ah, e só um pedido: livra-te de chegares ao pé de mim a comer pipocas!!  Só o cheiro delas me faz agoniar).

Realmente, apesar de partilhares com a tua avó um tema triste, o Alzheimer (infelizmente) é um problema muito comum que não deve ser ignorado.

Diverte-te com muito juízo.

Bjs

Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto.”

Entrevista a Alice Vieira e Nelson Mateus.