“SÓ DUAS COISAS QUE, ENTRE TANTAS, ME AFLIGIRAM…”
Crónica publicada no Jornal de Mafra
SÓ DUAS COISAS QUE, ENTRE TANTAS, ME AFLIGIRAM…
Eu tinha prometido que não ia hoje falar aqui do massacre de Paris. Porque estamos todos a ser bombardeados de manhã à noite com notícias—as mesmas notícias, as mesmas entrevistas, as mesmas imagens, horas e dias a fio—o que faz com que a violência se torne, de repente, banal. Que é o pior que pode acontecer.
E também porque estou a começar a ficar ligeiramente farta daquele discurso hipócrita, tipo “quando é na Síria e noutros lugares longínquos ninguém se manifesta, por que é que os mortos de Paris são mais importantes do que os outros?”, etc…
Claro que um morto é um morto onde quer que tenha sido assassinado. É claro que não há mortos de primeira e mortos de segunda. Mas também é claro que não se pode confundir razão com coração, e a questão do afecto (e, evidentemente, da proximidade) não tem nada a ver com qualquer tipo de importância lógica. Claro que me sinto arrasada por tudo o que aconteceu, em lugares diferentes, nestes últimos dias—mas desculpem se o meu coração está mais perto de uma terra onde vivi, de que conheço os cafés, os mercados, os pequenos restaurantes de bairro, as esplanadas, e onde tenho amigos e familiares.
Eu não queria falar mais nisto. Acreditem.
Mas duas coisas me fizeram mudar de ideias.
A primeira quando há pouco, ao ler a excelente reportagem da Fernanda Câncio no “DN”, dou com uma entrevistada, uma jovem muçulmana que se dizia “longe de qualquer radicalismo”, também ela afirmando “estamos todos na merda, os muçulmanos” —mas que confessava acatar e estar de acordo com muitas das proibições que são impostas às mulheres, entre elas a separação entre os sexos. “É para afastar as tentações”, dizia. E ainda a proibição de ouvir música. ”Não tenho nada a aprender com a música”, dizia. (“De la musique avant toute chose…”, dizia Verlaine que, evidentemente, não é para aqui chamado) Um mundo sem música…como será?
E a outra coisa foi uma rápida reportagem televisiva que nos dava conta de diversas rusgas em bairros de Lisboa. Num desses bairros, habitado por emigrantes de leste, a violência foi tal que tudo, ou quase tudo, ficou destruído. Uma das moradoras (a falar já um português muito razoável), chorando, só dizia “mas entrem, entrem nas nossas casas” —e as imagens mostravam o interior das casas como se nelas tivesse passado um furacão. Tudo partido, tudo estragado. E os moradores a chorarem e a perguntarem o que iam fazer das suas vidas.
A rusga terminou: ninguém foi preso, e nada (armas, droga, objectos roubados, etc…) foi encontrado.
Era um bairro de emigrantes, claro. Naqueles guetos para onde eles são normalmente encaminhados.
Pode parecer que não estive a falar dos atentados de Paris. Mas acreditem que estive.
A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.
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