“Diário de uma avó e de um neto”
sábado, 15 de maio 2021 – Dia da Família
Querida avó,
Há dias para tudo e mais alguma coisa.
Hoje celebra-se o Dia da Família.
A ONU proclamou este dia para sublinhar a importância da família na estrutura do núcleo familiar e o seu relevo na base da educação infantil, reforçando a mensagem de união, amor, respeito e compreensão necessárias para o bom relacionamento de todos; e também para chamar a atenção para a importância da família como núcleo vital da sociedade e para seus direitos e responsabilidades.
Tudo isto é muito bonito! No entanto, o conceito de família de hoje nada tem a ver com o de antigamente. O homem era o chefe da casa e toda a família lhe devia obediência. As mulheres ocupavam um papel secundário e estavam sujeitas, entre muitas outras coisas, a levar um par de estalos dos pais, mesmo depois de casadas.
Era comum as crianças trabalharem. As famílias eram bastante numerosas. Os irmãos mais velhos tomavam conta dos mais novos, ajudavam nas tarefas domésticas e começavam a trabalhar cedo, pois o dinheiro era pouco. Era comum as crianças não frequentarem a escola, ou ficarem apenas com o ensino primário.
Hoje o conceito de família é completamente diferente.
A família tradicional está em vias de extinção. Os casais separam-se e voltam a casar. Os filhos passaram a ser os meus, os teus e os nossos. Existem famílias monoparentais, existem famílias do mesmo sexo, famílias de adoção… No atual conceito de família, todos os membros colaboram nas tarefas domésticas, ajudam-se entre si e, normalmente, todos os seus membros trabalham ou estudam.
Nunca, como no último ano, foi tão desafiante viver em família. As famílias tiveram que se reinventar. Nunca estiveram tanto tempo juntas e sem sair de casa.
Tu és um belíssimo exemplo de família que nunca correspondeu aos padrões convencionais.
Tanto que um dia, decidiste bater com a porta e foste viver para Paris.
Agora reparo que no nosso “Diário” ainda não falamos do Maio de 68, nem da peça de teatro “Toda a cidade ardia”.
Que belo texto de Marta Dias, e direcção artística do teu amigo João Lourenço. Uma bela peça inspirada na tua vida e obra, que esteve no Teatro Aberto há 4 anos. Penso que fui vê-la umas 5 vezes. Estava lá a tua vidinha (quase) toda. Até o candeeiro espingarda (que eu tanto gosto), estava lá.
No palco do Teatro Aberto foi contada a história de um amor imenso e impossível, que abarca a vida de uma mulher e, assim, os últimos setenta anos da História do nosso país, reflectindo as mudanças de ordem política, económica e cultural que se verificaram, através da sua vivência, das suas palavras.
Quando começamos a dizer “Naquele tempo…”, é porque tudo mudou. O mundo mudou. Somos outros, agora.
E agora? O amor, que um dia nasceu, sobrevive? O que é, ao compasso dos dias e dos anos, dos segundos que suportam a nossa vida? O que é o amor, através da distância, guardado na memória, enquanto se espera (e se tem esperança)?
A tua história, querida avó, feita de muitas histórias, que atravessam a História. Ela leva-nos através da cidade cinzenta, da cidade em chamas, de revoluções e cantigas de embalar, pelo barulho das rotativas, pelo cheiro a tinta e pelas palavras escolhidas com cuidado. A tua história abre-nos todos os livros, dobrar as esquinas de todas as ruas e levar-nos pelo meio dos retratos desfocados do passado, pela alegria e pela serenidade dos dias em família, pela poeira do tempo que escorre, pelo silêncio da noite… vendo os ramos das árvores balouçarem e crescerem.
Que bom que é, através dos teus livros e das tuas histórias, fazeres com que tantos se sintam da tua família.
Gosto muito de ser teu neto.
Bjs e cuida-te.
Querido neto
Como já te disse, para mim o mês de Maio não tem a ver com Fátima e também não me apetece falar da família. Para mim, Maio tem a ver sempre com Paris.
Vivi lá nos anos 60.E isso marca qualquer pessoa.
Nessa altura virei costas à pátria, à família e ao namorado e aterrei em Orly. Lembro-me de me sentar num banco do aeroporto, sem saber o que fazer da minha vida.
Paris havia de se encarregar de me ensinar, partindo daquela frase tão certeira da Gertrude Stein, “não é tanto o que Paris nos dá, é sobretudo o que Paris não nos tira”
Lembrei-me que a minha prima Maria Lamas vivia no Quartier Latin, num pequeno hotel na Rue Cujas (escrevíamo-nos muitas vezes, por isso sabia a sua morada) e fui até lá. Era um hotel de quartos minúsculos, onde cabia a cama e pouco mais, paredes cheias de buracos, uma escada íngreme e em caracol. Lá viviam exilados políticos e estudantes sem dinheiro vindos do fim do mundo. Quem não podia pagar o quarto ao fim da semana, fazia a limpeza dos quartos todos durante a semana seguinte.
A dona chamava-se Madame Salvage e contava-se que em tempos tinha ido a Cuba, recebida por Fidel com honras de Estado, porque tinha acolhido no seu hotel uma série de exilados cubanos e nunca lhes cobrara um tostão.
Mesmo em frente ao hotel—o Café Cujas, que não fechava nunca, ou seja, apenas uma hora, das 5 às 6 da manhã para (pequenas) limpezas. Podíamos lá passar a noite inteira, e os criados nunca deixavam ninguém sentar-se no meu lugar (Foi aí que me habituei a considerar os cafés como “o meu escritório”)
Como te estou sempre a dizer, aquele lugar foi a minha verdadeira universidade.
Ali conheci o Jorge Amado, a Zelia Gattai, o Jorge Semprún, o Nicolas Guillén, o Neruda, o António José Saraiva, a Teresa Rita Lopes, e tantos outros. O quarto da minha prima era o lugar aonde todos acorriam. E as conversas não tinham hora de acabar.
No dia 1 de Maio de 1968 lembro-me de estar na rua a comprar raminhos de muguet, como era da tradição.
Dois dias depois caiu-nos uma revolução no colo.
O Quartier Latin ardia, os automóveis ardiam pelas ruas, para onde quer que se olhasse, tudo ardia. E nós ardíamos pelo meio das barricadas gritando palavras de ordem como “é proibido proibir” ou “a imaginação ao poder” e chamando “SS” aos polícias que nos batiam… Na Sorbonne, Jacques Higelin tinha colocado o seu piano, e ali se estabelecia um local de permanente delírio. Sartre também passou por lá, mas não percebeu exactamente o que se estava a passar. Não esteve lá muito tempo e não foi dos nossos heróis, como o Daniel Cohn-Bendit, chamado Danny-le Rouge (hoje dos “ Verdes”..)
Até que tudo teve de acalmar—mas nunca mais fomos os mesmos.
Regressei a Portugal: Maio de 68 tinha-me ensinado tudo aquilo de que eu precisava para poder lutar noutro país qualquer.
Mas fui lá voltando. A última vez que lá estive, Notre Dame estava a arder. Prometi a mim própria voltar breve, mas a pandemia cortou-me as voltas.
Mas pertenço aos Amigos de Paris, e sou “madrinha” de uma gárgula da catedral. Assim que puder, vou conhecer a minha “afilhada”.
Vens comigo querido neto?
Paris é uma cidade linda para as avós visitarem com os netos
Tenho a certeza que nos vamos divertir imenso e vais apreder muitas coisas que está avó tem para te ensinar.
Está um dia lindo de sol.
Vou para a esplanada beber café e pensar em Paris
Bom fim de semana
Bjs
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto … Desconfinados”