“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”
sábado – 27 de fevereiro 2021
Bom dia querida avó,
Se o Ruy Belo fosse vivo faria hoje 88 anos.
Confesso que, até hoje, li pouca coisa do Ruy Belo.
Sei que morreu muito novo, com apenas 45 anos.
Estudou direito na Universidade de Lisboa, nos anos 60, já depois de ter feito um doutoramento em Direito Canónico em Roma.
Em Portugal, exerceu, ainda que brevemente, um cargo de diretor-adjunto no então Ministério da Educação Nacional, mas o seu relacionamento com opositores ao regime da época, a participação na greve académica de 1962 e a sua candidatura a deputado, em 1969, pelas listas da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, levaram a que as suas atividades fossem vigiadas e condicionadas.
Foi leitor de Português em Madrid até 1977
Regressando, então, a Portugal, foi-lhe recusado pelo regime democrático a possibilidade de lecionar na Faculdade de Letras de Lisboa, tendo sido enviado a dar aulas noturnas na Escola Secundária de Ferreira Dias, em Agualva-Cacém
Apesar do curto período de atividade literária, Ruy Belo tornou-se um dos maiores poetas portugueses da segunda metade do século XX, tendo as suas obras sido reeditadas diversas vezes.
A sua obra, organizada em três volumes sob o título “Obra Poética de Ruy Belo, em 1981”, foi, entretanto, alvo de revisitação crítica, sendo considerada uma das obras cimeiras, apesar da brevidade da vida do poeta, da poesia portuguesa contemporânea.
Em 1991 foi condecorado, a título póstumo, com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant´iago da Espada, pelo Presidente Mário Soares.
Pronto, acho que ainda sei umas coisas…Mas ninguém melhor do que tu, querida avó, para me contares muito mais sobre quem foi o Ruy Belo. (Ah, e prometo que vou lê-lo!)
Beijinhos e bom fim de semana.
Bom dia querido neto,
Como tu sabes, há datas que festejo sempre. Mesmo quando as pessoas já cá não estão, mesmo se as festejo só para mim.
O Ruy Belo é uma dessas pessoas. E penso quase todos os dias nele. Não só por ter sido o meu primeiro namorado—coisa passageira… mas pelo muito que aprendi com ele até ao fim da sua curtíssima vida (morreu com 45 anos…).
Conheci-o em 1961, quando ambos entrámos para a Faculdade de Letras de Lisboa.
Eu era uma jovem ainda a cheirar à infância do liceu; ele, dez anos mais velho, já tinha uma série de cursos no currículo, um doutoramento feito em Roma, um livro de poemas publicado.
A princípio fazia-me muita confusão que uma pessoa como ele ainda insistisse em estudar mais, e se tivesse de novo matriculado numa faculdade, e andasse ali junto dos caloiros (e todos juntos estaríamos quando, pouco tempo depois, rebentou a greve académica, que nos uniu ainda mais).
Mas naquele tempo, a nossa faculdade fazia-se muito mais no bar de Letras, onde a Menina Manuela tirava bicas, e onde as mesas se enchiam de gente que falava, discutia, acreditava que era possível fazer do país um lugar onde – como ele dizia pelo meio desse primeiro livro – “ um dia haverá barcos e seremos livres”
Às vezes, de repente, o Ruy exclamava:
“Tenho de ir para casa”.
E levantava-se da mesa e saía.
E eu sabia que era um poema que estava a chegar. Nunca conheci nenhum poeta a quem a inspiração chegasse assim.
Mas o Ruy era também a pessoa mais desorientada que alguma vez conheci na vida…
Nunca me hei-de esquecer do dia em que ele insistiu em ir buscar-me a casa para irmos…? À distância destes anos todos não me lembro exatamente onde iríamos, mas possivelmente a uma exposição de pintura na Galeria 111, que era o poiso de todos nós. Mas lembro-me de ter dito “eu levo o meu carro” (o meu carro era, na altura, o carro onde se amontoava toda a gente, “que saudades do tempo em que, para nós, “mini” era o teu carro e não uma cerveja”, dizia há dias o Jorge Silva Melo, nosso comum amigo…), e de ele ter respondido “desta vez vamos no meu”.
Eu vivia então na Av. António Augusto de Aguiar – e até hoje me lembro do pânico que senti quando o Ruy, metendo a primeira para arrancar, começa a subir a Av. Fontes Pereira de Melo—em sentido contrário.
“Ó Ruy, não é por este lado!”, gritava eu, e os carros que vinham contra nós a buzinarem feitos doidos, e ele “deixa estar que isto é rápido!”
Era nos anos 60, claro. Se fosse hoje, com o trânsito de hoje, aquele teria sido o nosso último dia de vida.
Depois o curso acabou, o namoro acabou, as nossas vidas levaram rumos diferentes, mas nunca deixei de estar em contacto com ele, e às vezes aparecia cá por casa, ou vinha jantar (quase sempre em dia diferente daquele que tinha sido combinado…).
Lembro-me de como me indignei quando não o deixaram entrar como professor na faculdade, e ele teve de ir dar aulas num curso noturno de uma escola do então Ensino Técnico, no Cacém.
Lembro-me de ouvir a sua voz magoada quando me ligava: “à noite, quando chego a casa, custa-me tanto subir as escadas… Às vezes tenho de me sentar nos degraus ”
Hoje, enquanto recordo tudo isto, tenho na minha frente um postal da Fonte de Neptuno, em Madrid, que ele me escreveu, na sua letra tremida quando, nos anos 70, lá era leitor.
“O meu quarto na Casa do Brasil é o nº 15-A. “ E enchia o postal todo só com uma palavra: “escreve-me, escreve-me, escreve-me”!
Já agora deixo aqui um poema que escrevi sobre ele no meu último livro de poesia, “Olha-me Como Quem Chove” ( o título é tirado de um poema dele).
“Tenho de ir escrever
dizia o Ruy
olhando para as mãos que
tremiam sobre a mesa enquanto
a Menina Manuela tirava bicas e
fazia contas de cabeça
no bar de Letras
havia quem chamasse inspiração
às mãos do Ruy quando tremiam
Só a Menina Manuela dizia
cuidado com a chávena porque
a inspiração não pagava
a loiça partida
nem o trabalho que dava
limpar depois o balcão
então o Ruy saía e escrevia
poemas de amor de deus de solidão
das esplanadas que eram as nossas pátrias
do pôr do sol escondido entre os cavalos de Fão
e o cabelo de todas as mulheres
que com ele tinham habitado
os longos meses de verão
e o suor das suas mãos
quando tremiam
de todas
as mulheres
menos que injustiça
a Menina Manuela que
talvez o conhecesse
bem melhor que qualquer outra
Às vezes tenho muita vontade de lhe escrever um postal, daqueles com fontes e estátuas, como ele gostava.
Mas agora para onde é que eu lho mandava?
Beijos querido neto.
Bom fim de semana.
Cuida-te.
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”