“Retratos Contados de Ana Galvão”

Através do Testemunho da Ana Galvão aos Retratos Contados ficamos a conhecer os avós portugueses e espanhóis da locutora, radialista e apresentadora. Especialmente as histórias ternurentas passadas com a avó Féli, que tinha os seus macarrões com tomate sempre prontos à espera da família portuguesa…

Retratos Contados:­ O que é que sabes dos teus avós, maternos e paternos?

Ana Galvão:­ Olha, sei muito mais sobre a vida dos meus avós maternos porque sempre tive uma ligação muito mais próxima aos meus avós maternos do que aos paternos. Nasci em Madrid, vivi lá 14 anos e por isso os meus avós paternos, que são portugueses, não passaram essa infância comigo. Só em férias e em momentos muito excepcionais. Isso também provoca um certo distanciamento, mesmo não querendo. Os meus avós maternos são os dois de Madrid. O meu avô combateu na guerra (Civil Espanhola), e a minha avó passou fome nessa época do pós-­guerra, quando eles eram jovens. Quando Madrid se começou a endireitar eles conheceram­-se: eram dois amigos e duas amigas que faziam coisas juntos, como ir ao cinema, e darem passeios. Supostamente o meu avô estava destinado à amiga da minha avó e vice­-versa, mas acontece que enquanto falavam descobriram o facto curioso de terem nascido no mesmo dia do mesmo ano. Isso criou um elo mais forte entre eles e a magia acabou por acontecer. Atenção que eram conversas muito mais tímidas do que são hoje em dia! Eu estava sempre a pedir para me contarem esta história, era fascinada pela coincidência de terem nascido exactamente no mesmo dia!

A minha avó trabalhou apenas durante um período da vida numa perfumaria, coisa que teve de deixar de fazer quando ficou noiva do meu avô. As coisas tiveram de ser muito rápidas, porque o meu avô para sair com ela tinha de a ter como noiva senão não podiam estar juntos. Casaram em Madrid e fizeram toda a sua vida em Madrid, mesmo no centro da cidade.

RC:­ Como é que eles se chamavam?

A.G.:­ Alfonso e Feliciana! Mas a minha avó sempre odiou o nome dela, sempre…

RC:­ Não tinha um diminutivo?

A.G.:­ Era Féli, mas mesmo assim ela não gostava. Na altura do pós-­guerra muitas mulheres tiveram estes nomes por causa do desfecho feliz: há muitas Glórias, Vitórias, Felicianas, Felicidade, e de todas elas ela diz que lhe calhou o pior.

Fizeram vida em Madrid, casaram, tiveram dois filhos, a minha mãe e o meu tio, e sei que viajaram muito. O meu avô era uma pessoa muito curiosa porque ele era mecânico mas auto-didacta, não andou na escola. Foi soldado e não fez a escola, mas sabia de cor livros gigantescos, de 200 páginas. Pedia­-me: «abre na página que quiseres». Eu abria e ele debitava­-me aquilo tudo, era incrível! Como muitos outros avós, era «mãozinhas», arranjava desde os sapatos ao elevador do prédio. Outro facto curioso: ganhou um prémio de andar a maior distância de mota com apenas um litro de combustível, era tão engenhocas! Toda a gente já tinha parado e ele andava, andava… E eu adorava que ele me contasse estas coisas.

Vivi com eles até aos 14 anos, e depois eles vinham cá visitarmos muito. O meu avô morreu em 1994, a minha avó morreu há dois anos.

RC:­ E como foi quando vocês vieram para Portugal e eles continuaram em Madrid?

A.G.:­ Não foi muito catastrófico porque eu vim com 14 anos, ou seja, o que a mim me fazia mossa não era ir para longe dos avós, era deixar a escola e os meus amigos. Com 14 anos o que é importante é o rapaz de quem gostas, não é uma altura em que tu reflictas sobre estas coisas. A tua cabeça está noutro sítio, ou seja, tu procuras identificação nas pessoas da tua idade. Mas sempre fizemos por nos manter em contacto, sempre estivemos muito próximos eles vinham cá e nós íamos sempre no Natal.

RC:­ E sobre os avós paternos?

A.G.:­ Claro que também convivíamos! O meu avô já faleceu, portanto agora só tenho uma avó viva, que é a mãe do meu pai. O meu avô era músico, foi chefe de banda da RDP e curiosamente ele trabalhou aqui (na rádio) há muitos anos. O meu pai também é músico, e o meu irmão também herdou essa tendência…

Eram os dois lisboetas, a minha avó é de Campolide, e sei que se conheceram cá. Quando o meu avô teve a banda de música foram para Espinho, e lá tiveram o meu pai. Gostavam muito desta pândega, desta coisa de andar nos casinos.  “O meu avô trabalhava muito e a minha avó acompanhava­-o. Mesmo vivendo em lugares distantes, por passar-mos férias todos juntos, acabamos por criar uma convivência muito amistosa com eles. O meu avô trabalhava muito e a minha avó acompanhava­-o. Mesmo vivendo em lugares distantes, por passarmos férias todos juntos, acabamos por criar uma convivência muito amistosa com eles.

RC:­ Mas quando vieste aos 14 anos essa relação foi reforçada?

A.G.:­ Sim, e quando vínhamos de férias a Portugal passávamos muito tempo com eles. O que eu acho é que eles estavam mais preenchidos profissionalmente do que os meus avós espanhóis, porque esse meu avô reformou­-se e a minha avó era dona de casa, e ela encheu-se muito da tarefa de ser avó. Com o meus avós paternos, embora a convivência fosse sempre óptima, sempre gostei muito deles, sempre os vi como pessoas mais ocupadas, com menos tempo para nós. Por exemplo, eu à minha avó portuguesa nunca a chamei de Avó, chamava­-lhe avó Lizete. Ela manteve-se sempre mais ocupada, por ser mais jovem.

RC:­ Então não era a avózinha tradicional?

A.G.:­ Não, essa era a avó Féli.

RC:­ E aquelas memórias de infância como sensações, sabores, cheiros, experiências?

A.G.:­ Com a minha avó espanhola, eu tenho muitas lembranças. Guardei muitas coisas da convivência com os meus avós, porque em Espanha nós passávamos todos os fins de semana com os meus avós. Coitada da minha mãe! Somos três e ela estava a tirar um curso universitário e então ela mandava-nos para a casa dos nossos avós para poder estudar. Era espectacular, porque havia uma liberdade que não existia em casa dos pais e há coisas que eu lembro sempre que vou a Madrid com imensa nostalgia. Lá é muito típico sair à tarde, as pessoas vão muito à rua, por isso os habitantes de Madrid, como em Lisboa são os alfacinhas, são os “gatos”! O meu avô era muito assim, havia sempre uma rotina com ele em que duas coisas aconteciam: vinha sempre almoçar a casa e nós todos os dias nos escondíamos no mesmo sítio, que era atrás do cabide dos casacos, para que quando ele chegasse para pôr o casaco nós gritávamos “AHHH!!!” e ele “ai que susto, não estava nada à espera!” Era uma estupidez porque nós todos sabíamos que todos sabiam! À tarde, ele levava-nos à rua para comer gelados ou comer uma coisa típica em Madrid que é ahorchata – é um sumo feito com um fruto seco que existe em Espanha que é maravilhoso! Tinha uma paciência desgraçada para nós, éramos três irmãos mais dois primos, cinco miúdos.

Da minha avó, lembro­-me da infinita paciência dela. Aos fins-de-semana ficávamos com ela e fazíamos coisas horríveis: eu lembro­ me da minha prima e eu termos deitado para a sanita um quilo de feijão-verde que ela tinha descascado – na altura as pessoas descascavam as coisas à mão – nós, não sei porquê, fomos à sanita deitar aquilo fora. Mas ela jamais se zangava, era impressionante. Ela não conseguia, ria­-se por um lado, mas depois zangava-­se, depois ria­-se, zangava-­se!

RC:­ Então não impunha regras?

A.G.:­ Não! Outra coisa que eu me lembro dela é que ela literalmente fazia chichi de tanto rir, é a única pessoa no mundo que eu vi a fazer isto! Acho que ela tinha um lado de infância perdido porque vem de uma família em que eram doze irmãos numa época em que a infância se perdia, em que tiveram de ir trabalhar desde sempre. O pai dela morreu muito cedo e então acho que ela tinha um lado infantil que nunca perdeu. Era uma miúda com rugas! Não se zangava, acho que havia uma parte dela que até gostaria de fazer disparates só que já era avó, estava a tomar conta dos netos, tinha o almoço para fazer e o homem à mesa à espera… Só me consigo lembrar dessas maldades que nós lhe fazíamos. Quando ela morreu eu lembrei­-me dessas coisas todas porque ela era muito querida, muito curtida. Lembro-me das comidas que ela fazia, sempre a mesma comida, eram macarrões com tomate. É a coisa mais simples do mundo, mas eram os macarrões dela. Sempre que chegávamos de viagem de Lisboa para Madrid, fosse uma da manhã ou fossem duas da tarde tinha sempre macarrões com tomate. Ficou esta imensa nostalgia da existência deles porque eram muito «avós»… Nos últimos três ou quatro anos dela viveu muito na nossa casa. Vinha a Lisboa estar connosco porque estava sozinha e precisava de ajuda…

RC:­ E isso já com que idade?

A.G.:­ Bem mais velha, morreu com 93 anos.

RC: Fala-nos da tua mãe enquanto avó do Pedro…

A.G.:­ É uma super-avó com quem o Pedro adora estar, por acaso eu estava a pensar também no outro dia, que os nossos pais não se assemelham à figura que nós sempre tivemos dos avós: as mulheres mantêm um estilo jovem durante muito mais tempo. A mãe do Nuno veste­-se de calças de ganga e a minha mãe não usa jeans mas tem o cabelo comprido e liso, ou seja, não é a figura da senhora com os rolos no cabelo, cabelo branco, tipo avozinha…

RC:­ Mas é a avó que veste calças de ganga mas faz botinhas de lã, ou nem isso?

A.G.: Nem isso.

RC:­ O avô Dagoberto (pai de Nuno Markl) ele praticamente não conheceu, não é?

A.G.:­ Não, não conheceu. O avô Dagoberto esteve com o Pedro para aí três vezes quando o Pedro era minúsculo, mas sempre mostrando o seu lado revolucionário! Lembro­-me dele ir tirar um cigarro para fumar ao pé do bebé e eu dizia “nem pensar!”, e ele “tem de se habituar, que é para ficar rijo!” Com meu pai, acontece uma coisa curiosa: o meu pai tem uma filha de 10 anos, ou seja, os meus pais separaram­-se e o meu pai casou de novo com a Fátima, e tiveram uma miúda há 10 anos que é a Joana.

RC:­ Que é tia do Pedro…

A.G.:­ Que é tia do Pedro! Está neste momento com ele, adoram­-se, e ela está muito comigo.

Ou seja, o lado de «avô» do meu pai foi completamente substituído pelo lado de «pai», portanto não há muito espaço para ele ser avô porque tem uma miúda de 10 anos para tomar conta.

 RC:­ Que idade é que tem o teu pai?

A.G.:­ O meu pai vai fazer 74 anos, foi pai aos 64. Para ele foi duríssimo aceitar o facto e lembro­me de falarmos e ele dizer «já tenho três filhos», mas todos apoiámos a decisão de aumentar a família…

RC:­ E a tua irmã não se importa de ter um pai mais velho do que os amigos dela?

A.G.:­ É a realidade dela e essas coisas não se questionam, ou talvez questione um pouco na escola… Mas agora temos o Júlio Isidro, o Paulo de Carvalho, agora é diferente. O núcleo familiar mudou imenso, a separação é muito mais vulgar.

 RC:­ Que idade é que tu tinhas quando os teus pais se separaram?

A.G.:­ Eu já era crescida, tinha 24 anos, os meus pais separaram­-se tarde…ou seja, o Pedro não tem avós homens a exercer. Claro que o meu pai é super querido e carinhoso, mas não como avô. A Joana recebe hoje um tratamento que nenhum de nós recebeu, é tipo a neta.

 RC:­ Então e a mulher dele faz papel de avó do Pedro?

A.G.:­ Não é bem porque é jovem ainda. Ela é madrinha, ou seja, o que aconteceu é que ela foi escolhida por todos nós para madrinha dos miúdos para não ficar num “no men’s land”… Eu digo­-lhe muitas vezes: «tu és avó do Pedro», só que ela é da minha idade, tem só mais dois ou três anos que eu…

RC:­ Não tem idade para ser avó?

A.G.:­ Ter, tem! Há uma miúda no Canal Q que é maquilhadora, tem 40 anos e já é avó! Mas no nosso caso, o papel de avó remete para as duas senhoras, para as matriarcas da minha família. Para a mãe do Nuno, é o único neto dela e é mesmo avó de fazer tudo aquilo que nós não deixamos. Dá-­lhe quantidades astronómicas de chocolate que eu não quero, e eu digo­-lhe “Oh Helena, não lhe dê chocolate porque ele fica com dores de barriga” e no dia a seguir ele diz-me: “A avó deu­-me não sei quantas bolachas de chocolate”. Mas eu depois não consigo zangar-­me, sei que não vou mudar a cabeça dela.

 RC:­ Mas também sendo o único neto é normal, as avós que têm mais netos conseguem ter uma disciplina mais rígida.

A.G.:­ Sim, a minha mãe já tem cinco netos e impõe uma disciplina completamente diferente…

RC:­ Então e o Pedro acaba por estar muitas vezes com a tua avó, a bisavó dele?

A.G.:­ A minha avó não está apta para estar com o miúdo, ela já tem senilidade e um certo grau de demência. Já não nos reconhece a nós, ou seja, seria muito complicado exercer esse estatuto de avó, quanto mais… Mas tentámos, houve jantares de família em que ela ocupou esse lugar de bisavó.

RC:­ E como é que se lida com isso?

A.G.:­ Dói. Por várias razões: porque é alguém que tu conheceste com uma personalidade brutal, super-inteligente, a rainha da festa. É estranho! Mas o ser humano é isso, nós todos somos potencialmente pessoas em decadência física e mental, e então pensar nessa perspectiva doí. Sobretudo se é alguém que tu sabes como foi! Houve uma altura em que ela não tinha ninguém para a ajudar e nós dividiamo­-nos por dias da semana: e eu ia às Quartas, e levantava­-a, lavava­-a, dava­-lhe o almoço…e tu aí tens mais noção do que é a decadência do ser humano.

RC:­ Eu acho que acabamos por sofrer de duas maneiras: dói-nos a nós e também sofremos por não sabermos se a pessoa sente as coisas, e o que é que sente.

A.G.:­ Sim, sim, a mim fazia­-me muita confusão. Uma pessoa que sempre foi apta para tudo, foi dona-de-casa e cozinhava as melhores sopas da rua… De repente é-lhe negado fazer tarefas tão normais como lavar os dentes. Lembro-­me de lhe perguntar: «tu consegues ir sozinha?» e ela dizia­-me: «eu consigo, eu consigo» e fazia a maior trapalhada de sempre. Tu não te zangas, não dizes nada, mas a pessoa percebe que não conseguiu fazer.

RC:­ Mas está num Lar ou está em casa?

A.G.:­ Ela agora está num Lar há uns meses, mantivemo-la em casa até ser possível.

RC:­ Quem é que estava mais com ela em casa então?

A.G.:­ Primeiro estava uma senhora todo o dia com ela e nós íamos lá a casa imenso. A minha madrasta ajudou­-nos muito, também. Depois tinha uma senhora brasileira, que ela adora, que vivia lá. Mas depois a senhora foi embora do país e ela não queria aceitar mais pessoas, houve ali um impasse… Foi ela própria que preferiu.

RC:­ Ela própria preferiu?

A.G.:­ Sim, não queria ninguém, não queria mais pessoas dentro daquela casa, queria só a senhora que se foi embora, a Preciosa. Entre pôr outra pessoa estranha em casa para tomar conta dela ou estar num sítio onde tem cuidados 24 horas, ela preferiu assim. Só que ela está assim num momento em que não se dá conta de muitas coisas, não consigo perceber. Por exemplo, fui ter com ela com o Nuno, e perguntei: «lembras­te do Nuno?» E ela: «é aquela tua amiga da escola», a olhar para o Nuno. Por um lado é meio-cómico mas por outro é muito triste porque eu não consigo perceber: eles são conscientes disso que lhes está a acontecer, ou vivem assim naquele…

RC:­ Eu acho que alguns terão momentos de consciência. Vêem a tua cara e percebem «eu fiz qualquer coisa que não devia ter feito», sentem também a nossa reacção.

A.G.:­ Sim, nós não dizemos nada, fazemos de conta.

RC:­ Quais são os pensamentos que gostavas de partilhar em relação à maneira como os mais velhos são vistos por nós, pelos portugueses?

A.G.:­ A primeira palavra que me ocorre é: abandono. Completo e total. É o desrespeito e falta de amor, e não é só uma ideia feita que nos vendem na comunicação social, de todo, basta estar com os olhos abertos para entender. No outro dia eu estava num centro comercial e estava a ver uma data de senhores e senhoras sentados a dormir sentados numas cadeiras de plástico sozinhos. Depois levantei essa questão no Facebook e comentei: não têm outros sítios para estar, não têm família? Houve muita gente que disse que não era verdade, que eles queriam mesmo estar ali, mas eu acredito que não. Há pouco tempo também estive nas urgências do hospital, e a quantidade de pessoas de idade que estão ali, acamadas, sem ninguém é um terror absoluto. Mas é da condição humana, nós tratamos os outros mal. O Homem tem desrespeito em vez de amor por aqueles que estão numa situação mais delicada e mais frágil. Somos assim com crianças, animais, e velhos e é horroroso. O abuso humano por quem está fraco é notório, mas com os velhos é pior porque estão na recta final, ou seja, a perspectiva destas pessoas não é de esperança, de todo.

Entrevista: Adelaide de Sousa e Nélson Mateus Retratos Contados
Fotos da entrevista: Tracy Richardson