Os pentes da minha avó
A minha avó não tinha problemas com pentes, e eu também não.
Durante três anos vivemos juntos, juntos usámos as Amoreiras como despensa (a minha avó nos restaurantes caros e eu no take-away abaixo de 250 g.), juntos discutimos sobre as imposições excessivas em casa (a ventoinha espalhava o calor, o ar condicionado incendiava os livros), até que finalmente consegui alugar um apartamento. Melhor gastar na casa e poupar na avó.
Mas antes de me mudar houve a cena dos pentes. Eu só precisava de um pente, do meu, e a minha avó das suas escovas. Porém, certa manhã, o meu único pente desapareceu. O pente seguinte, comprado à pressa nas Amoreiras, seguiu-lhe o exemplo. E o terceiro e o quarto.
Como vivíamos os dois sozinhos e eu não acreditava no milagre da desmultiplicação dos pentes, concluí logicamente que a minha avó mos roubava. Aos 93 anos, decidira que os meus pentes eram mais gentis para o cabelo branco e fino. Ainda bonito.
Eu sabia que a minha avó tinha ganas do diabo, partia antes de vergar, mas os ganhos como revisor freelancer não cobriam quatro pentes baratos por semana.
Antes de a confrontar, espreitei-lhe para a carteira enquanto dormia. Evidentemente, descobri o stash que ascendia a seis pentes, todos seguidinhos e com fios de cabelo branco e fino, dente sim, dente não.
«Desculpe, mas a avó anda a roubar-me os pentes», disse-lhe.
«Que ideia! Para que preciso eu dos seus pentes?»
«O que faz com eles não me interessa, só lhe peço que não mos roube de novo.»
«Que disparate, roubar pentes… O menino não está bom da cabeça.»
Estava bom da cabeça, tanto que lhe mostrei o reservatório de pentes. «Vê? A sua carteira, os meus pentes.»
E a minha avó, que tinha presença de espírito e graça e algum desprezo pela verdade, disse-me que isso de pentes estava abaixo dela, não aceitava provas. Realmente, agora pentes, para quem lera o Proust em francês.
Eu, que por essa altura nem no português do Tamen lera o Proust, respondi: «Muito bem, avó. Roubou-me o último pente».
Prosseguimos numa paz podre, paz despenteada, até que – uns dias depois – ouvi por fim um chocalhar na casa de banho.
Quando abri a porta, encontrei a minha avó desamparada, a tentar puxar pelo novo pente. É que, depois da discussão sobre o desfalque, eu comprara a corrente de aço inoxidável mais pesada da loja de ferragens. Numa das pontas, com parafuso, anel de pressão e porca, prendera o pente. E enlaçara o resto da corrente à volta do lavatório, trancando-a com um cadeado de meio quilo.
«Mas que vem a ser isto?», perguntou a minha avó de pente e cadeado na mão. Tinha 93 anos e tentava rebentar a corrente. Nem que tivesse os meus 19 anos conseguiria. Nem que fosse um Land Rover usando a tracção às quatro rodas.
«Desculpe, avó, mas alguém andou a roubar-me os pentes, alguém. Assim, o pente não sai daí.»
«A roubar-lhe os pentes? Mas faz ideia de quem? Tire esta porcaria daqui, por favor.»
«Não pode ser, isso é que não. O pente ainda me desaparece…»
Nos dias seguintes, a meio da noite, de manhã, de tarde, a qualquer hora, ouvia o chocalhar da corrente, os suspiros da minha avó, e encontrava-a atarantada na casa de banho, esbaforida com a possibilidade de alguma visita dar com o pente acorrentado. E eu pensava, não sei bem porquê, este é o preço do amor.
Contudo, quando percebi que a minha avó estava mesmo exausta e despenteada, desaparafusei o pente e guardei a parafernália no armário.
«Só tirei o cadeado porque já não há ladrões de pentes», disse-lhe.
Nessa tarde, fui a pé às Amoreiras. A minha avó voltava, também a pé. Encontrámo-nos a meio caminho. Vinha aliviada e sorridente. Sem discussões, estendeu-me um saco: «Assim já lhos podem roubar à vontade».
Dentro do saco estavam todos os pentes de todas as lojas do centro comercial.
Não me lembro se abracei a minha avó. Lembro-me de nos termos rido de mim, dela, dos dois. Morreu aos 102 anos com o cabelo bem penteado.
Desde aí, por distracção, perdi todos os pentes do saco. Devia ter continuado a usar a corrente, mas também não sei dela.
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Prémio Literário José Saramago 2019
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Mas sobretudo parou para conversar com quem encontrava. No fim de cada dia, publicava na sua página de Facebook um diário escrito no telemóvel relatando os principais eventos da viagem. Agora em versão ampliada e ilustrada, eis em livro o diário do caminho.