Estão-me no sangue, estes avós!
Começo a escrever este texto no dia do aniversário da minha bisavó paterna, Beatriz Borges. A matriarca da família era também minha madrinha e uma das figuras marcantes da minha vida. Todos a tratavámos por avó Tiz. Morreu com 94 anos, quando eu estava no Brasil, impossibilitada de viajar para assistir ao seu funeral. Ainda cheia de vigor na década de 60, quis acompanhar de perto a chegada da primeira bisneta e fez questão de me trazer, com apenas 3 meses de idade, para ser batizada na Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa. Havia uma “multidão” à nossa espera no aeroporto, onde cheguei no berço, toda vestida de amarelo, “como um canarinho”. A cerimónia do batismo deu-se pouco depois, pois já estava combinada com o padre Adriano Botelho, que excecionalmente aceitou celebrá-la sem a presença dos meus pais, Amândio e Maria Ivone.
Eu nasci no Rio de Janeiro, onde os meus pais se exilaram fugindo à ditadura salazarista. Durante toda a infância, até ao 25 de Abril de 1974 – quando a Revolução dos Cravos permitiu o regresso do meu pai, perseguido pela PIDE, à terra natal -, eu e o meu irmão, João, um ano mais novo, costumávamos vir passar férias com os nossos avós. Eram universos tão contrastantes que, por alguns meses, parecia que tínhamos duas vidas diferentes. No resto do tempo, as cartas, os postais, as encomendas e alguns raros telefonemas iam suprindo ausências. Sendo ambos filhos únicos, os meus pais, faziam muita falta aos meus avós.
Eu desde sempre fui mais ligada aos avós paternos, que viviam na Rua do Cruzeiro, à Ajuda, e o João aos maternos, residentes em Belém. Quando chegávamos a Lisboa, ia cada um para a sua “casa”. Curiosamente, sou eu que hoje moro no antigo prédio da Rua da Junqueira, com vista para o Tejo, que se tornou meu endereço oficial desde os anos 90. E que foi originalmente adquirido por outra figura lendária na família: o avô da minha mãe, Afonso, que migrou de uma aldeia da Beira Alta, perto se Seia, junto à Serra da Estrela (onde até hoje mantemos fortes raízes), para a capital e se tornou “expedidor” da Carris. Era casado com a avó Nascimenta, cujas centenárias terrinas de servir à mesa sobrevivem no meu louceiro. Só os conheci por fotografia (ele parecia um galã maduro, de cabelos brancos e olhos azuis) e através das doces memórias da minha mãe, que os idolatrava. Como os pais, Armando e Natalina, trabalhavam, ela, em criança, passava muito tempo “na casa dos avózinhos”.
Natalina e Armando, meus avós maternos Avô Borges (segundo marido da Beatriz)
Já eu, adorava mesmo era a minha avó paterna, Arminda. A mulher mais distinta da família, mereceria um capítulo à parte. Nasceu num bairro operário de Lisboa, filha da doméstica Maria e do carpinteiro Valentim, os bisavós que partiram primeiro. Linda desde pequena, tornou-se uma jovem cobiçada nos seus tempos de modista dos Armazéns do Chiado. Mistura de Amália Rodrigues e Rita Hayworth, era alta, elegante e sorridente. Possuía uma sensualidade discreta, que a tornava ainda mais atraente. Andava sempre impecavelmente vestida, com a roupa feita por ela própria a partir de modelos copiados das revistas de moda. Acabou casada com o meu avô Bento, que de “abençoado” só tinha mesmo o nome. O seu B inicial era de boémio! Comerciante, até era “bom partido”, mas um mulherengo inveterado. A principal companhia da minha avó era a sogra Beatriz, que acabou por ir morar com o casal após enviuvar do segundo marido – um militar que não cheguei a conhecer, a quem todos chamávamos avô Borges e que o meu pai travava por padrinho. Na verdade, já antes moravam no mesmo prédio e faziam muitas refeições e atividades em conjunto. Mas claro que eu só me apercebi disso tudo – e também do gosto do meu avô Bento pelo jogo e pelos copos – muito mais tarde. Em criança, só me lembro de ver a minha avó chorar com saudades do filho, há tantos anos exilado. Às vezes, mais nervosa, deitava sangue pelo nariz, o que me deixava assustadíssima. Ela acalmava-me, compondo pedacinhos de algodão nas narinas e retomando a sua rotina normal.
Batizado nos Jerónimos, ao colo da bisavó e madrinha Tiz Cerimonia celebrada pelo padre Botelho, com a Tiz e o padrinho Zeca
Essa rotina, incluía vários suspiros por dia, porque a minha avó vivia preocupada com os problemas de toda a gente. Foi a pessoa mais bondosa que conheci. E a que melhor traduzia, a meu ver, a palavra compaixão. Guardava os restos de comida para a “senhora do burrico”, que ao fim do dia passava à porta, pedindo “lixo” para alimentar os seus animais. Tratava como a uma irmã a sra. São, empregada já velhota. Tinha sempre tempo para acudir aos mais carentes e necessitados. E para ouvir os desabafos das tias, sobrinhas, primas e amigas, tornando-se confidente delas. Mas também para conviver com as vizinhas (a Tatá, a Mimi, a Lucília, a Lina, a Virgínia …), formando um grupo de amigos (maridos incluídos) que muitas vezes se juntava para passeios dentro e fora de Lisboa. Passeavam também com os meus avós maternos, para conversar sobre os filhos e os netos ausentes. Chegavam a comemorar os nossos aniversários em Lisboa quando estávamos no Rio. E quem apagava as velas do bolo era a prima Nelinha, dez anos mais velha do que eu, que estava sempre ansiosa pela chegada da Mô, para ir passear com a menina e os tios. Nos amarelecidos álbuns de fotografias dos meus avós, há o registo de dezenas de piqueniques e almoçaradas em lugares como Sintra, Mafra, Bucelas, Luso, Bairrada, Buçaco, Miradaire, Batalha … e os Verões passados nas praias, com a Nelinha a fazer de minha “baby sitter”. A avó Minda levava-me consigo para todo o lado: às compras, ao cabeleireiro, à igreja, à pastelaria… Íamos anualmente ao estúdio “Foto Lisboa” para eu ser retratada em “pose”, com os vestidinhos costurados por ela. Diziam sempre que eu parecia uma boneca.
No dia do meu batizado, os meus pais estavam no Brasil (aparecem na foto)
Na intimidade, aquela avó linda era ainda mais minha. Abria-me os segredos da sua penteadeira feminina (que ela chamava de “psiché”). Diante do espelho, punhamos juntas baton cor de rosa e pó de arroz, daquele de espalhar pela cara com um pompom. Nas gavetinhas, estavam os colares, os brincos, os anéis, os alfinetes de lapela, os terços e medalhas de santinhos… todas as suas “jóias”. Umas eram para brincar, outras para quando eu fosse grande… (À conta disso, quando eu voltava das férias e me zangava com a minha mãe, dizia-lhe: “Tu és feia, és pobre. A minha avó Minda é que é bonita e rica!”). No mesmo quarto, havia a cómoda de madeira encastrada com marchetaria e puxadores dourados, comprada especialmente quando eu nasci, para guardar o enxovalinho da bebé, e que hoje decora a entrada da minha casa. O roupeiro da avó escondia mais riquezas, que me foram reveladas à medida que eu crescia (e que ia pedindo “emprestadado”)… robes de seda, combinações e saiotes, cintas de ligas, sutiãs e espartilhos de renda, chapéus, luvas, redes de apanhar o cabelo… Ah, o cabelo da minha avó, já o conheci curto. Mas guardo até hoje numa caixinha os caracóis castanho arruivados que na juventude lhe caiam sobre os ombros. Abdicou deles quando engravidou do meu pai, para se tornar mais prático tomar conta do menino quando este nascesse.
Com avó Arminda no jardim de Paço d’Arcos Graças à Tiz eu andava sempre entre Brasil e Portugal, mesmo com poucos meses
Podia escrever um livro inteiro sobre a minha avó Arminda, que me ensinou a rezar o Pai Nosso e a Ave Maria de joelhos e mãos postas à frente do seu oratório, onde brilhava uma lamparina ao lado das imagens do Sto. Padre Cruz e do Papa João Paulo II. Com pais ateus, socialistas, revolucionários, eu nunca andei na catequese. Aprendi com ela a história do Menino Jesus e a oração do Anjinho da Guarda. Esta avó andava por casa de “bata”, mas sempre com um lecinho perfumado ao pescoço. Ela adormecia-me a cantarolar o “Alecrim Dourado”, brincava comigo de “Janela, janelinha, porta, campainha… trim, trim!”. O nosso mundinho era cheio de lengas-lengas, músicas tradicionais portuguesas e clássicos românticos. Se fechar os olhos, consigo ainda ouvi-la rir por me ouvir a rir das “patetices” que me dizia. Como consigo sentir o cheiro do leite creme dos dias especiais e das torradas barradas com manteiga preparadas com café com leite pela manhã, todos os dias.
Arminda, minha avó favorita, em 3 fases da sua vida
Continuo a tomar o pequeno-almoço sobre o tampo de mármore do mesmo móvel com gavetas que havia na cozinha dela. O qual trouxe para a cozinha da minha outra avó, a Talina, de quem herdei uma estrutura física oposta à da Arminda. Pernocas gordas, sobrancelhas grossas e língua afiada também fazem parte dessa herança. A Talina, antiga “ajuntadeira” no Ministério da Guerra, cultivava um lado brejeiro sempre reprimido pelo marido, o avô Armando, oficial de máquinas da Marinha, que se fazia “superior”. À conta disso, levei muitas reprimendas por me sentar de pernas abertas “à rapaz”, por não ter modos à mesa e ser “uma glutona”, por me distrair tanto tempo a ler “e não saber coser nem um botão”…
Eu e avó Arminda em Cascais Legenda escrita atrás da foto com letra da minha avó
Mas quero voltar à Rua do Cruzeiro e aquela casa com quintal, arrecadação e garagem, que já não pertence à família. O prédio tinha escadas de ferro nas traseiras ligando os vários andares e eu conhecia toda a vizinhança pelo nome. Fui tão feliz ali! Já depois de adulta, a viver com os meus pais na Parede, na Linha do Estoril, era lá que me refugiava sempre que precisava ficar até mais tarde em Lisboa, por conta do trabalho como jornalista no “Correio da Manhã” (onde iniciei a minha carreira como estagiária aos 17 anos) e das primeiras noitadas. Chegava cansada, fora de horas, e encontrava aberto o sofá-cama branco do escritório. Se era Inverno, o saco de água quente dentro dos lençóis. Se fosse Verão, um jarro de água fresca à cabeceira. Em compensação, trazia-lhe livros e revistas, bombons, flores… Antes, nos tempos da faculdade – cursei Comunicação Social no ISCSP – Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, que então funcionava num belo palácio da Junqueira -, sempre que tinha uma “aberta” na hora do almoço, lá subia eu a correr pela Calçada de Sto Amaro acima, para ir ver a “Escrava Isaura” e comer com os meus avós. Era o único lugar onde me sabia bem a pescada cozida! Nessa altura, já a Tiz era velhinha. Ela, que chegou a passar fome em miúda, beijou a mão da Rainha D. Amélia (até a entrevistei sobre este fato verídico!) e sofreu um bocado nas mãos do primeiro marido, o avô Pascoal, impressionava-se com a “violência” que via nas telenovelas brasileiras. “Coitadinhos dos pretinhos…” Durante uns anos, ainda ia para a cozinha preparar as melhores batatas fritas do universo sempre que eu anunciava a visita. E, no fim das refeições, lavava a louça em alguidares de esmalte azul, com avental e umas mangas grossas de napa postas sobre o casaco preto, para não se molhar.
O tio-avô Amândio, de quem o meu pai herdou o nome, morreu jovem. Com prima Nelinha na Praia da Torre (Oeiras)
Antes de ficar acamada, a Tiz era a pessoa mais engraçada da família. Adorava mostrar as fotografias em que aparecia ainda nova e vaidosa, com o peito farto enfeitado pelo colar de pérolas que combinava com os brincos, e as suas estolas de peles. Ela era maliciosa, gostava de festarolas, de anedotas e de beber um “xiripiti depois da comida”. Eu, com 7 ou 8 anos, subia num banquinho que punha a meio da sala de jantar, declamava poemas e inventava “teatrinhos”, que ela aplaudia entusiasmada como se estivesse numa platéia de verdade. Tinha olhos brilhantes debaixo das lentes grossas dos óculos e emocionava-se com facilidade, fungando para um lencinho que escondia na manga. Também costumava aperaltar-se para sair. Lembro-me que estava “toda janota” numa tarde em que andámos pela Rua Luís de Camões e ela comprou uma rifa. Disse-me que era uma surpresa para mim… Foi mesmo: a minha primeira boneca loura de pestanudos olhos azuis, a quem chamei Simone (lá em casa, eram fãs da Simone de Oliveira, do António Calvário, do Toni de Matos…).
Até aos meus 18 anos, mais ou menos, eu costumava fazer uns “programas” sozinha com a avó Tiz. Aquilo que hoje se chamaria “cenas de gajas”. Fomos de propósito ao cinema de Campo de Ourique para ver o filme “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, com “a atriz da Gabriela”. Ai, o que ela se riu na cena em que Mundinho (José Wilker), já defunto e todo nu, espreita a sua viúva (Sónia Braga) na cama com o novo marido (Mauro Mendonça). Levou-a às lágrimas, tantas foram as gargalhadas… Quando a Tiz piorou, de velhice, passava muito tempo a dormitar, com o lenço na cabeça e um xaile de lã sobre os ombros. Eu costumava deitar-me ao lado dela na cama. Observava as pálpebras marcadas pela operação às cataratas e os lábios que me beijocavam com frequência. Tinha a pele tão macia, a minha bisa… Eu ficava a vigiar-lhe a respiração e, às vezes, por uns instantes, ela parava. E eu, desesperada (sem nunca ter ouvido falar em apneia), gritava pela avó Minda, receando que a Tiz tivesse morrido durante o sono.
Afonso e Nascimenta, bisavós maternos Arminda (avó), Beatriz (bisavó) e Bento (avô) – lado paterno
Tive muita pena de não a acompanhar no final da sua vida. Mas sabia que ia ficar bem instalada, em mais uma daquelas caixas de madeira cobertas por paninhos de renda feitos por ela, que, em criança, descobri no jazigo da família, no cemitério da Ajuda. Era passeio frequente eu ir com a Tiz e a Minda ao “jardim do avô Borges”. Levava um baldinho e uma pá, daqueles de brincar na praia, para ajudá-las “nas limpezas”. Pelo caminho, regávamos também as flores das campas de alguns conhecidos. Mas o meu maior fascínio era olhar para os porta-retratos dos antepassados cujas ossadas estavam no jazigo (para mim, uma simples casinha de pedra encimada pela cruz) e imaginá-los dentro daquelas caixas. Um dia, depois de muita insistência, lá me deixaram “fazer uma festinha” no crâneo do tio Amândio, o filho mais novo da Tiz, que morrera muito jovem com tifo e de quem o meu pai herdara o nome.
Moema e pais em Copacabana- Natal 64 Moema e irmão com os avós paternos em Lisboa
Já a minha avó favorita, morreu-me, literalmente, nos braços. Adoeceu com problemas respiratórios e entrámos numa espiral de complicações, com sucessivos internamentos hospitalares. Digo entrámos, no plural, porque eu, já adulta e casada, corria a acudir aos chamados do meu avô que a via piorar a cada dia. Com os meus pais novamente a viver no Brasil, foram tempos difíceis, em que me valeu de muito o apoio da prima Nelinha, sobrinha-neta da avó. Mas, na verdade, tão íntima quanto eu, visto ter passado praticamente toda a vida ao pé dela. Certa noite, estava já a doente inconsciente, os médicos mandaram levá-la de urgência para o hospital. Liguei para o meu pai e disse que não o faria. Sabia que a minha avó havia de querer morrer na sua casa, na sua cama. E assim foi. Num momento estava ainda viva e quente, apoiada no meu colo. No outro, morta. O meu avô pegou na mão da companheira e, em silêncio, pediu perdão. Trocamos um olhar profuuuuuuuuuundo. Deixei-os sozinhos para ir telefonar ao meu pai: “Acabou. Já não sofre mais”.
Eu e o meu irmão a brincar no quintal dos avós maternos, no prédio em que vivo até hoje Passeio Moema bebé com avós e bisavó paternos
Nunca mais foi a mesma pessoa depois dessa noite, o meu avô Bento. Na adolescência, andei um período revoltada com a sua fama de “bon vivant” falido, mas comigo ele foi sempre amoroso.Tratava-me desde pequena por “nina” ou “nini”. Eu era, mesmo, a sua menina. Como comecei a ler e escrever cedo, considerou-me muito esperta e tentou explicar-me como se fazia o Totoloto. Em vão, pois sempre fui péssima com contas e não percebia nada daquilo. Se ele achava que eu lhe daria sorte, enganou-se. Tão pouco aprendi a jogar às cartas, embora ele tivesse uma coleção de baralhos. Compensei-o com um orgulho enorme na neta que se fez jornalista. Não falhava a leitura de uma única reportagem ou entrevista minha! Quando a avó Arminda adoeceu, tornou-se carinhoso e preocupado com ela. Ele, o marido machista que antes dependia da mulher até para pôr numa caneca a água aquecida com que fazia a barba. Mesmo depois de viúvo, gostava de se manter aprumado, o cabelo já ralo e grisalho penteado com brilhantina, os casacos a cheirarem a after-shave… Durou pouco depois dela partir, mas ainda saía para comer fora e “fazer a digestão” indo a pé ao Largo do Calvário, onde durante anos frequentou “A Promotora”. Até que o cancro o atacou e, quando demos conta, já era tarde demais. A última coisa que o meu avô me pediu, ligado às máquinas numa clínica, foi: “Nina, leva-me para a tua casa, para ao pé de ti. Não quero morrer aqui”. Infelizmente, não era possível. Ele já tinha passado um longo período acamado em casa dos meus pais antes de sair de lá, praticamente inconsciente, “para o fim”. Fui eu que recebi a ligação da clínica a informar o falecimento já esperado. Fui eu quem, mais uma vez, dei a notícia ao meu pai.
Avós maternos e paternos costumavam encontrar se mesmo quando estávamos ausentes
Com os meus avós maternos, tudo se passou como num filme distante. A minha avó Talina, tomada por uma demência precoce, morreu cedo demais. Também em casa. Na casa onde eu vivo, no quarto onde eu durmo. A minha mãe, chamada às pressas do Brasil, nem chegou a despedir-se. Estava a subir as escadas do prédio quando ela deu o último suspiro. Eu, que na altura tinha uns 13 ou 14 anos, nem sequer a vi no caixão. Nem o meu irmão, que ela e o marido tanto mimaram. Tinham receio que “as crianças ficassem impressionadas”. Mas eu nunca tive medo dos mortos e até hoje adoro cemitérios. Aconteceu o mesmo quando partiu o meu avô Armando. A úlcera nervosa que o torturava há décadas acabou por o matar no Hospital de Seia, pois sentiu-se mal durante uma estadia “na terra”. Os meus pais interromperam de imediato uma curta viagem e regressaram. Eu recebi a notícia no Brasil. Havia estado com o meu avô duas semanas antes, num “almoço de despedida”, pois preparava-me para voltar ao Rio de Janeiro. Despedidas habituais para quem andou sempre cá e lá. Mas esta foi a última e nunca mais entrei nesse restaurante da minha rua, que ainda existe e é bem popular. Lembro-me que falámos sobre a “conta aberta” que ele mantinha na pastelaria da esquina, a “Chique de Belém”, para eu ir lanchar com os meus colegas da faculdade quando quisesse (muitos pastéis de nata foram comidos nessa época…). E sobre o “bacalhau à marinheiro” que era a sua especialidade na cozinha, recordação dos tempos em que andou embarcado.
Este meu avô foi longe… à Ásia, à Índia… Trouxe serviços de porcelana, peças de decoração finas e uma parte do enxoval da minha mãe. Mas eu não me lembro dele fardado e sério, como aparece nas fotos. Para mim, o avô Mando, era o que contava mil e uma histórias curiosas durante as refeições (na maioria, inventadas ou, pelo menos, acrescentadas). Era o que tinha as unhas amarelas de tanto fumar. Era o que guiava o seu pequeno NSU, “uma ganda máquina”, chamando aos outros condutores “camurso”! Ahahaha… o que eu e o João nos ríamos com essas expressões!!! A minha preferida era “na ponta da unha”, usada quando algo lhe parecia estar perfeito. Nós também gozávamos por ele telefonar diariamente à minha mãe às 18h em ponto, e ela, sem precisar adivinhar, já atender a ligação dizendo: “Olá, paizinho”. Não sabíamos que esse era o “timing” do verdadeiro amor.
Bento e Arminda- restaurante na Parede Bento e Arminda nos anos 80
Estão-me no sangue estes avós. O convívio, a perda e as memórias de cada um, assim como as respetivas consequências familiares, dariam para pelo menos mais 10 Retratos Contados. Eles continuam comigo, nos objetos do dia a dia, em cartas e fotos antigas, em trejeitos, em sonhos… Fui tão privilegiada por os ter conhecido que nem sei explicar!!! Quando me olho ao espelho, vejo-os também a eles. Em especial, às mulheres… A Talina, nas formas largas do meu corpo, de cada vez que apanho o cabelo comprido num carrapito ou que lhe repito os passos na casa que foi dela. A Tiz, quando aprumo o peito para usar os seus colares, quando me rio à gargalhada ou me sirvo de um cálice de Porto. E a Arminda, se canto, se rezo, se ajo de modo a sentir-me melhor pessoa. Ou se a tristeza e a saudade me invadem e sinto, perto, pertinho, a suavidade do seu perfume.
Eu, jovem, com as avóz Tiz e Arminda O meu irmão João, jovem, com o avô Bento.
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