“DEUS FECHA PORTAS E ABRE JANELAS”.
Conheçam o coração Nobre da mais querida Chef portuguesa!’
A sua família vem toda de Vale de Prados, em Macedo de Cavaleiros. Que recordações fortes tem ligadas a esse lugar?
Justa Nobre: Eu sou muito ligada aos afectos, à família. Muitas vezes estou a fazer coisas na cozinha e a lembrar-me dos pratos que as avós me ensinaram a fazer, que a mãe me ensinou a fazer, que as tias me ensinaram a fazer…sou uma mulher de família e tenho muita necessidade do aconchego dos meus. Eles não precisam de estar ao pé de mim, só preciso de sentir que eles me amam, que gostam de mim.
Quando vim para Lisboa, com 15 anos, eu tinha muitas saudades. Pensava muito na família, e só isso já ajudava a sentir-me bem. Mas tinha um ritual que se calhar era um pouco infantil: vinha à janela, olhava para a lua, e pensava assim: “se eles estiverem à janela, estão a ver a mesma lua que eu”. A lua era a mesma e portanto sentia-me um bocadinho próxima deles. Mas também tive de crescer depressa!
Em todo o caso, sentir a família por perto sempre foi importante, e talvez por isso quando comecei a trabalhar em hotelaria eu tenha trazido o resto da família. Trouxe a minha irmã, depois veio o Beto, veio o Ilídio…
Que ordem é que ocupa a Justa na linha de sete irmãos?
J.N.: Sou a segunda! A primeira é a Guida, depois sou eu… Nós eramos 10, mas morreram 3 em bebé, senão eu seria a quarta.
Isso era uma coisa muito comum na época…
Claro com aquelas difterias, os miúdos faleciam…
J.N.: Penso que é por isto que eu trago sempre para a cozinha as minhas raízes: posso criar, posso inovar, mas está lá sempre aquele toquezinho do meu passado.
Então as memórias não são só as visuais, são também as gustativas, as olfactivas?
J.N.: Completamente, eu trouxe comigo as memórias gustativas,não só visuais, nem só sentimentais.
Se calhar é isso também um pouco da receita do Nobre, não é? Quando as pessoas se sentam à mesa, de alguma maneira todos sentimos que estamos a provar um bocadinho da nossa memória, dos nossos sabores?
J.N.: É, é isso mesmo que eu quero. Tenho muitos clientes que me dizem assim, quando comem um pastel de massa tenra: “Ai, Justa faz lembrar os pasteis da minha avó!” E eu: “Obrigada por me estar a comparar com a sua avó!” , “Não, Justa, não a quero ofender, é porque são caseiros!”…(risos)
Os Retratos Contados sentaram-se à mesa da Chef mais querida de Portugal e fizeram com ela uma viagem pelos sabores da infância e da idade adulta. Uns sabores mais doces do que outros, é certo…
É pela parte da tradição, não é?
J.N.: Claro, só que gosto de brincar com as pessoas… Tenho uma ligação muito familiar com os clientes, muito próxima. Mas sim, eu tenho uma cozinha de mãe, uma cozinha de casa, aquela cozinha de amor que se faz para a família. É isso que os meus clientes têm necessidade de comer, e cada vez mais porque as pessoas trabalham. Já não há aquela empregada que está lá em casa desde há 50 anos a saber fazer as nossas comidas. Mas as pessoas ainda têm na memória certos pratos, de quando eram crianças, e eu gostava que elas não se esquecessem. Para mim é um privilégio eu poder lembrar-lhes esses pratos, lembrar-lhes um empadão, um bom peixe assado… Mas se quiserem uma coisa mais moderna, sou uma cozinheira versátil!
(Nélson): Eu vim cá jantar uma vez e houve duas coisas que me marcaram: a Justa vir à mesa de todos os clientes – não é uma Chef que fique escondida na cozinha – e de perguntar se estava tudo bem, se identificávamos o que estava no prato. Comi uma sopa de santola e um bacalhau confitado, lembro-me muito bem.
J.N.: Eu uso muito os produtos da terra, e não só Trás-os-Montes, cozinho pratos de qualquer parte do país. Claro que tenho mais tendência para a minha região, mas gosto da cozinha alentejana, gosto da cozinha de todas as regiões de Portugal.
Mas então, os avós de ambos os lados eram todos ligados à lavoura?
J.N.: Sim, os meus avós maternos tinham uma quinta linda que se chamava Quinta ” Vale Meão” (não tem nada a ver com o Vale Meão do Douro), que depois foi vendida para fazerem uma barragem, eles tiveram de ceder os terrenos.
Há alguma receita que ainda hoje replique e que lhe tenha sido ensinada por alguém especial?
J.N.: As da tia Lucinda. Entre os 7 e os 14 anos vivi com uma tia numa aldeia ao lado, porque a minha tia não tinha filhos e as pessoas das aldeias tinham necessidade de ter uma criança em casa para dar um recado, para apoiar, e a minha tia pediu à minha mãe para ir eu. Estive lá 7 anos, fiz lá a escola, e aos fins-de-semana e nas férias ia à outra aldeia, para ao pé dos meus irmãos. A minha tia e o meu tio ensinaram-me a fazer pratos fabulosos, porque o meu tio também cozinhava bem. A tia Lucinda assava um cabrito como ninguém, fazia um rancho à moda do Porto – isso até era mais o meu tio – que ninguém fazia igual e eu aprendi a fazer essas coisas. Eu vinha da escola, destapava a panela, sabia provar e já dava a minha opinião. Em nova, a minha tia tinha cá estado em Lisboa e portanto à tradição tinha juntado algum requinte. Apresentava uma travessa sempre tão bonita! Infelizmente, hoje em dia a Tia Lucinda tem Alzheimer e está num lar, portanto já não me conhece…
Nós sempre tivemos uma tendência para os assados: acendia-se o forno de lenha, na Páscoa, nos casamentos, em qualquer festa, e a minha tia temperava aquelas carninhas muito bem temperadas e assava-as no forno. A minha mãe e as minhas avós também o faziam, por isso as festas da família eram sempre muito agradáveis. Da altura do fumeiro também tenho boas memórias: era no Inverno, nós vínhamos da escola e se elas estavam a fazer as linguiças ou as alheiras nós pedíamos um “chichinho” – era um bocadinho de carne – para elas nos porem na grelha, e assim iam enchendo o fumeiro, e grelhando carne para nós. Quando era na Páscoa faziam um folarzinho para cada um de nós, e quando coziam pão, um pãozinho para cada. Quando punham o fumeiro nas varas a secar todos nós tínhamos lá uma linguicinha, uma alheirinha que era nossa, e nós é que decidíamos quando é que devíamos comer! Chamávamos-lhe o “Reizinho” porque seria para comer no Dia de Reis, e quando nós decidíssemos que já estava seco ou quandoa mãe dissesse, comíamos. Era uma maneira de nos mimarem, não havia dinheiro para brinquedos e nós divertíamo-nos tanto, tanto! Nós e os primos, como nós brincávamos! Havia sempre aquele carinho, o pai ia à feira e trazia um pião para os rapazes, trazia uma coisinha para nós, a mãe também – eramos tão mimadinhos, era tão bom…
Em criança já sonhava a vir ter uma vida relacionada com a cozinha?
J.N.: Quando eu vivi com a minha tia Lucinda ela era a enfermeira da aldeia. Era ela quem dava as injecções às pessoas naquelas caixas de inoxe eu com 9 anos ajudava a minha tia a preparar as coisas: fervia a seringa e preparava as injecções. Sei preparar injecções oleosas, injecções com pó… Uma vez, um rapaz com dois metros de altura que estava a trabalhar comigo no “Iate Ben”, em Carcavelos, picou-se num dedo com um cherne, furou o dedo e ele desmaiou. Dei-lhe estalos até ele acordar, desinfectei e tratei, portanto sei que tenho sangue-frio para essas situações. Ou seja, eu queria ser cozinheira ou enfermeira, só que para ser enfermeira não tinha quem me pagasse os estudos. Depois casei cedo, com 19 anos… Ah, mas antes de casar estive 3 anos a tomar conta de uma miúda que tem precisamente a minha idade, a Xandra, e que tem uma paralisia cerebral. Estava numa cadeira de rodas e era preciso fazer-lhe tudo, dar-lhe a comida à boca, falar com ela, conversávamos imenso apesar dela não falar. Íamos para a Gulbenkian passear, íamos ao cinema. Mas não era só eu, tinha de haver sempre mais gente a ajudar porque eu quase uma menina, e estava a ser tão bem tratada como ela, a filha. Estive com ela 3 anos, e aprendi imenso.
E quando começou esse cuidado tinha que idade?
J.N.: Tinha 16, saí de lá aos 19 para casar. Ela é sobrinha do escritor Soeiro Pereira Gomes, que escreveu os “Esteiros” . Agora vem aqui ao restaurante com o irmão almoçar, que os pais entretanto já morreram. Gostavam muito de mim porque era como se eu completasse a Xandra: gargalhava, corria, brincava com ela, o que ela não dizia, dizia eu! Estou ligada de coração a esta família, quero sempre saber como é que ela está, se no Natal têm a ceia ou se a faço eu, para o irmão não estar a perder tanto tempo na cozinha. A mãe dela, a Madamme Bastos, era professora do Liceu Francês, e também me ensinou algumas coisas de culinária. Portanto acabei por aperfeiçoar a minha cozinha também com esta família.
Depois casei cedo: o Nobre era empregado de escritório numa empresa de automóveis muito grande, e logo a seguir ao 25 de Abril as coisas estavam mal e começaram a complicar-se ainda mais, começaram os ordenados em prestações… O chefe dele, que tinha um prédio ali na Alexandre Herculano, decidiu fazer um restaurante numa parte de casa, no 33 na Alexandre Herculano.
Retratos Contados: Então conte-nos como aconteceram os restaurantes na sua vida…
Justa Nobre. Casei cedo: o Nobre era empregado de escritório numa empresa de automóveis muito grande, e logo a seguir ao 25 de Abril as coisas estavam mal e começaram a complicar-se ainda mais, começaram os ordenados em prestações… O chefe dele, que tinha um prédio ali na Alexandre Herculano, decidiu fazer um restaurante numa parte de casa, no 33 na Alexandre Herculano. O Nobre gostava imenso de hotelaria e eu que cozinhava bem por isso ele convida-nos, a ele para a sala e a mim para a cozinha, mas eu não queria ir como Chef de cozinha nem por nada, tinha 21 anos! A minha irmã Guida teve uma tasquinha pequena por cima do Poço Borratém, e quando trabalhei lá por acaso aí conheci muitos actores, como o António Évora… Todos os atores do “AdHoc” iam lá comer todos os dias. Na altura oVirgílio Castelo estava a começar a carreira de actor e também o conheci. Enfim, era uma tasquinha e não deu para fazer uma hotelaria a sério, mas deu para conhecer muita gente.
Quando o Luís Vaz nos convida para tomar conta do 33 na rua Alexandre Herculano, fiquei com algum receio porque vi que era uma coisa a sério. Mas ele incentivou-me muito: «vá, não tenha medo que você vai conseguir», e eu como precisava de ganhar mais dinheiro, lá fui. Queria ter uma vida decente e então aventurei-me! Gostava de cozinhar, garra não faltava, para mim trabalhar dez horas ou vinte horas era o mesmo, e assim fiz lá um grande restaurante, onde estivemos 8 anos. Depois convidaram-nos para abrir o «Iate Ben» em Carcavelos. Eu precisava de dar às asinhas porque ali já estava muito parada, já não havia por onde evoluir. Ficou decidido que eu e o Nobre iríamos liderar um grande grupo, eu como Chef de cozinha e ele como Chefe de Sala, mas depois as coisas não eram bem como nós queríamos e desmotivámo-nos. Um dia virei-me para o meu marido e disse: «Zé, vamos abrir um restaurante nosso». Disse-me que eu era doida, que não havia dinheiro. Eu respondi que então íamos procurar um restaurante mesmo sem ter dinheiro, e que íamos encontrar. Nas férias eu fazia-o vir todos os dias a Lisboa à procura de restaurantes, enquanto eu ficava com o Filipe, que era pequeno, em Cabanas de Palmela. Um dia telefona-me e diz: «encontrei um restaurante de que vais gostar…só há uma coisa, quase não tem cozinha.» E eu só lhe disse que se cabia um fogão de bom tamanho, eu e mais outra pessoa, ia gostar de certeza! Assim encontrámos o Constituinte, na rua de São Bento. A pessoa não queria muito dinheiro, e conseguimos negociar a entrada…fizemos lá um grande restaurante, mas custou a fazer porque as pessoas não nos conheciam. Estivemos lá 2 anos. Depois a senhoria não foi correcta connosco: o acordado era comprarmos o restaurante ao fim de 2 anos, e ela começou a atrasar os papeis e todo o processo…não foi honesta. Mas as desonestidades pagam-se sempre, as atitudes que cada um tem caiem sempre sobre eles. Se temos boas atitudes, as coisas correm bem, se temos más atitudes, mais tarde ou mais cedo as pessoas sofrem com isso. Começou a aumentar o preço e nós dissemos que nem pensar! Um dia o meu marido chega-me em pânico depois de uma reunião com ela…e ainda bem que eu não fui, porque a senhora tinha ouvido o que não queria. Fomos à procura de outro restaurante, e quando já tínhamos o Nobre da Ajuda a senhora já quase nos oferecia o restaurante, já quase nos pagava para lá estarmos! Aí eu disse: «agora não, minha senhora, fique lá com o restaurante, aguente-se».
Portanto abrimos o Nobre na Ajuda e em 1998 fomos para a Expo tendo o ainda o Nobre na Ajuda. Na Expo, fizemos uma parceria e fomos crescendo imenso, mas há um dia que começámos a ver umas as coisas com as quais não concordávamos e decidimos acabar tudo. Tivemos imensos problemas durante muitos anos, problemas judiciais para limpar o nosso nome, e acabámos por não ganhar nada, ainda perdemos 30 anos de trabalho da nossa vida, o Nobre da Ajuda, perdemos muito. Mas não perdemos a dignidade, não perdemos a força de trabalhar e desde que a gente não perca a nossa família… está tudo bem. Eles trabalhavam connosco e ninguém quis ficar, começámos todos a vida do zero.
Justa não poupou palavras para descrever algumas atitudes que poderiam ter desencorajado muitos de nós de continuar em frente – e o caminho revelou-se brilhante! Uma verdadeira mulher do Norte!
Muitos embates? Muitos revezes?
J.N.: Muitos embates, mas sabe uma coisa: o que não nos mata, fortalece-nos. Digo-lhe mais: nos últimos anos, graças a Deus, as coisas têm corrido muito bem, Deus fechou portas mas abriu sempre janelas. Nunca passámos fome, já vivemos muito apertadinhos, com bastantes dificuldades depois destes embates, e deste recomeço. Mas eu costumo dizer: só se perderam bens materiais, não perdemos a nossa dignidade nem a nossa força. Agora o nosso nome está limpo e isso para nós é muito importante…
Isso é importante e a família está unida!
J.N.: A família está unida e isso para nós é o mais importante e quem nos conhece sabe que eu estou a dizer verdade. Somos pessoas muito rectas, falhamos como toda a gente, mas quando percebemos que falhamos não temos problema nenhum em dizer «desculpe». Esta é a nossa postura, foi assim que criámos o nosso filho, e é assim que quero que ele crie os filhos dele.
Eles são fantásticos!
J.N.: Mas são diabinhos, portam-se tão mal os três juntos! Mas dão-se com toda a gente. Toda a gente os adora, os professores, os colegas mais novos e mais velhos, são amigos de toda a gente!
Mas eu creio que tem a ver com a vossa maneira de estar, ao serem tão unidos acaba por ter vantagem, não?
J.N.: É mais cansativo, porque eu trabalho com o meu marido há mais do que 40 anos…
Quando chegam a casa não têm novidades para contar um ao outro?
J.N.: Agora temos mais porque eu ando cá e lá, portanto já falamos mais ao telefone, já falamos quando chegamos a casa… já temos um bocadinho de conversa.
As coisas estão todas muito envolvidas e se não houver uma separação acaba por ser muito complicado.
J.N.: Mas nunca se consegue fazer a separação que se deveria. Não, não somos assim tão irracionais para conseguirmos fazê-lo. É muito giro a gente dizer aos empregados que os problemas ficam à porta, e uma parte até fica, mas há uma parte que sobra. Ainda por cima se a casa é nossa, os nossos problemas de casa e os nossos problemas do trabalho são todos nossos problemas.Se fossemos empregados cada um no seu lugar, era mais fácil!
Têm de ter feitios compatíveis e de ser muito compreensivos…
J.N.: Mas também chocamos! Nem sempre estamos de acordo.
E tem de haver um líder?
J.N.: Tem de haver! E não quer dizer que o líder tenha sempre razão, muitas vezes não tem e chega-se à conclusão que as outras pessoas têm outra perspectiva da coisa e até têm razão…
O facto do seu filho vir trabalhar convosco, foi algo que ele sempre quis ou foi acontecendo?
J.N.: O Filipe era para ter seguido um outro caminho, o do futebol, mas desistiu. Também não quis estudar, não quis tirar um curso superior. Por isso, começou a ajudar, e foi-lhe apanhando o gosto. Depois apareceu aquele restaurante lá no Casino que só funciona à noite e de que ele gosta, por isso ele e o meu cunhado tomam conta, e eu ando cá e lá.
E com a vida atribulada tem tempo para os netos?
J.N.: Tento ter e tenho! Por exemplo, no mínimo uma vez por semana gosto que vão dormir lá a casa. Quando eu posso, ao Domingo ainda os vou buscar e eles dormem lá para Segunda-Feira, depois Segunda-Feira eu e o avô vamos levá-los à escola.
E eles adoram?
J.N.: Ui, ficam doidos! De vez em quando vou à escola deles fazer queques, dar uma aulinha de culinária e eles ficam todos contentes.
E os colegas conhecem a Justa, não é?
J.N.: Sim! Eles estão os três no mesmo colégio desde os 3 anos, de maneira que toda gente conhece a avó Ju: a Mónica é a «Mó», a Mariana é a «Bolinha», portanto toda a gente sabe que eu sou a avó deles. Os directores estão sempre a perguntar quando é que eu posso ir lá, só que o tempo é que não chega para tudo.
Eu tenho um elo muito forte com eles e já o meu filho tem a mesma ligação à família, desde sempre. O Natal é sempre passado em família também, a consoada em minha casa e depois no dia de Natal revezamo-nos: um ano é em casa de um irmão, no outro ano é em casa de outro. Estamos sempre juntos, independentemente de estarmos sempre a trabalhar juntos, mas nesse dia é diferente porque é uma festa e estamos sempre muito ligados.
Tanto a Justa como as suas irmãs são todas ligadas à mesma área: isso é como uma herança genética que coube a todos?
J.N.: É uma herança genética, mas é também um elo de família. Nós os sete temos uma ligação muito forte. Muita gente diz que não é costume ver um elo tão forte como o nosso: se uma está com dificuldades já estamos todos preocupados, se há outro que está triste, já estamos todos preocupados…
Vemos que a Justa está a passar os mesmos valores aos seus netos porque já estamos aqui há umas horas e não os vimos a zangarem-se uns com os outros, mas a brincarem juntos.
J.N.: Também têm o seu confronto, faz parte, nós também tínhamos…mas gostam todos muito uns dos outros. Ainda no outro dia a Mónica esteve na aldeia 3 ou 4 dias com a minha irmã Ana e com a Guida, e os outros só perguntavam “a Mónica quando chega?”, “ Ó Vó, a Mónica já chegou?” Têm sempre saudades uns dos outros
“HOUVE MUITAS COISAS QUE NÃO FIZ COM O MEU FILHO
PORQUE TÍNHAMOS DE TRABALHAR!”
Os seus netos também já gostam de culinária?
J.N.: Gostam. O Gabriel já conhece a receita das panquecas, já prepara ele tudo e é só eu ajudar, só no fogão é que ainda não mexe. A Mónica está a começar a mexer em facas, estou a começar a ensiná-la, mas os outros não: untam forminhas, lambem a terrina dos queques (risos) mas mais nada. Já estão um bocadinho presentes quando eu estou a cozinhar.
E gostam?
J:N.: Gostam, gostam, mas eu acho que é aquele gostar de criança, para eles é só um brinquedo diferente. Por exemplo, a Mariana ontem à noite enquanto eu estava na cozinha chamou-me, levou-me de mão dada e disse “Vó, uma surpresa para ti, tens de fechar os olhos” e quando cheguei, lá estava um piquenique, “É só para nós as duas!” Não quis partilhar o piquenique com a Mónica nem com o Gabriel. Quando brinco com eles aos restaurantes uma vez um é o chefe, outra vez é o cozinheiro, (têm todos jalecas de cozinha iguais às minhas), de vez em quando tiram o pedido e depois escrevem e põem coisas na mesa…são brincadeiras!
E pedem para lhes contar histórias?
J.N.: Muitas! Querem história com história, que é uma história dum livro e depois, para aguentarem mais um bocadinho sem adormecer com a luz apagada, querem história sem história: eu invento uma história, e depois eles também têm de fazer o mesmo. Têm muito jeito para inventar histórias, até a Mariana conta uma história. Normalmente contam a história dos “Três Porquinhos e o Lobo Mau”, mas na versão de os Três Netinhos: um faz a casinha de palha, que a mais pequenina a Mariana, o Gabriel faz a casa de madeira e a Mónica que é a mais crescida, é a mais protectora, faz a casa de tijolos.
Justa Nobre transforma-se na Vó Ju, cansada mas feliz: inventa histórias no escuro, ensina a fazer queques e até a mexer em facas.
Cancela compromissos para poder estar com a nova prioridade na sua vida: os netos!
E conhecem a realidade da cidade e do campo?
J.N.: Sim, é importante eu dizer que a fruta está ali na árvore, que as batatas estão debaixo da terra, que a vaquinha dá leite, que o esparguete não é do supermercado… Quando vamos para a aldeia vamos sempre a falar das árvores, e eu faço perguntas para eles começarem a conhecer um bocadinho de tudo o que há no campo.
Recorda-se da primeira vez que ouviu a palavra avó?
J.N.: Ah não sei, a Mónica devia ser tão pequenina! Mas creio que a seguir a terem dito «pai» e «mãe» devem ter dito «avó», porque sempre foram muito ligados a nós, mas não me lembro quando.
Fica-se com o coração derretido, não?
J.N.: Claro que ficamos! Qualquer coisa que eles façam, as festas de Natal que eles fazem no colégio, o que for, a gente fica sempre com o coração derretido, claro que sim!
Então o seu foco agora são os netos?
J.N.: O meu foco continua a ser a família, mas de qualquer maneira nos meus tempos livres o meu foco principal agora são os netos.
Se tiver um outro compromisso num dia importante para o neto, o neto ganha sempre?
J.N.: Ganha mesmo! Se eu puder fazer ambos, tudo bem, senão…os netos estão primeiro e não tenho pudor em dizer às pessoas porque é que não posso ir. Todos sabem que os meus netos estão primeiro!
Aquilo que não se fizer hoje com eles pode já não vir a fazer, e há histórias que não se repetem, não é?
J.N.: Eu sei que houve muitas coisas que não fiz com o Filipe porque éramos novos, tínhamos de trabalhar, estávamos a construir a nossa vida. Sempre que estávamos juntos tentávamos que fosse um tempo bom, um tempo bem partilhado, sempre com qualidade. Hoje em dia, tiro uma semana de férias com os netos, e depois preciso de outra para descansar: eles são três e eu já não tenho 30 anos! Fico cansada, mas feliz. O avô já anda a pensar onde é que vamos este ano, se calhar a aldeia porque temos lá casa. Preferimos não viajar para muito longe para podermos estar com eles.
E nessa semana que estão com os netos os pais não estão com eles?
J.N.: Às vezes sim, outras vezes não – eles é que escolhem.
Há muita gente que diz que os pais educam e os avós deseducam. Como é no vosso caso?
J.N.: Nós até ensinamos as regras, mas se eles insistem três vezes acabamos por quebrá-las. Os avós, só muda a morada, de resto são todos iguais.?
Como é a mais velha em relação aos mais novos?
J.N.: Se estiverem num ambiente familiar, até é capaz de se estar nas tintas para eles, mas em público eles protegem-se uns aos outros. São muito cúmplices e é isso que eu gosto de ver neles. Em casa são capazes de andar à tareia – que eles chegam a andar à tareia!
Costuma estar a observá-los à distância, sem dizer nada?
J.N.: Às vezes, chego ao colégio, eles estão no recreio e eu fico a vê-los, ou mesmo em casa fico toda derretida a olhar para eles… São a minha paixão, não há nada a fazer.
E quando olha para trás para a menina que saiu de Macedo de Cavaleiros aos 15 anos, sente que os seus sonhos se tornaram realidade?
J.N.: Os sonhos que eu tinha eram de uma vida melhor: uma profissão a que me agarrar, dar uma vida boa ao meu filho para que ele pudesse estudar num bom colégio, viver numa boa casa… O que todos os pais querem para os filhos! Graças a Deus, realizei esse sonho e os meus netos também estão a ter essa vida. Claro, se não tivesse tido aqueles revezes que lhe contei, as coisas poderiam estar melhor. Mas felizmente têm saúde e têm amor, e isso é o mais importante. Além disso continuamos de pé, continuamos unidos, temos um casamento de quase 40 anos…
E reconhecida pelo trabalho que faz, e isso é bom.
J.N.: Sim, eu gosto de ser reconhecida pelo que faço, pela pessoa que sou. Não tenho duas faces, isso é que é importante e verdadeiro.
E ainda lhe faltam realizar alguns sonhos?
J.N.: Falta sempre, a obra nunca está completa e eu não quero parar! Já viu se aos 57 anos eu já tivesse tudo feito?! Então o que é que eu ia fazer daqui para frente! Para já, quero morrer velhinha, muito velhinha…
E na cozinha?
J.N.: Sim, claro que sim. Eu amo aquilo que faço, portanto para mim não é sacrifício, é canseira, mas é o que eu gosto.
Ficaria feliz daqui a uns anos de ver os seus netos à frente de um restaurante “O Nobre”?
J.N.: Eu sempre disse ao meu filho, desde que ele era pequeno: tanto me importa que sejas pedreiro como engenheiro, só me interessa que sejas um grande homem e feliz. Com os meus netos é a mesma coisa. O meu filho não tirou nenhum curso superior e eu não fiquei frustrada por isso! Nunca vou impor nada, e não acredito que o meu filho e a a minha nora lhes imponham algo nesse sentido porque eles também fizeram o caminho deles. Agora, claro que se alguém tiver jeito e quiser ficar com o negócio, se eu cá estiver para ver, ficarei feliz. Mas nós criámos a nossa empresa para ganharmos a nossa vida enquanto fazemos o que gostamos, e eles que sigam o caminho deles e que sejam felizes.
Saibam muito mais sobre a Justa Nobre aqui: Retratos Contados da Justa Nobre
Entrevista – Adelaide de Sousa e Nélson Mateus
Fotos (no Nobre) – Tracy Richardson Photography