50º Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.
E pronto, estava-se mesmo a ver no que isto ia dar: novo confinamento, recolher obrigatório.
E vão por mim que ainda vai ser pior. E a culpa não é do vírus, a culpa é nossa.
As pessoas ouvem, lêem, vêem televisão, mas encolhem os ombros, aquilo não é com eles, “quero lá saber, eu faço aquilo que acho que devo fazer, estamos numa democracia,” etc,etc…
E andam nas ruas sem máscaras, ou com máscaras por baixo do queixo, o que deve servir para muito, ou penduradas no braço, o que ainda deve servir para mais.
Há dias, aquela senhora que aparece na televisão a explicar tudo, acho que é ministra ou assim, explicou muito bem que os ajuntamentos familiares em casa são dos maiores portadores do vírus.
Pois a minha Perpétua, que está sempre atenta a essas coisas e às vezes até toma notas para não se esquecer, ligou à nossa prima Etelvina, a dizer-lhe para ter cuidado. A prima Etelvina vive sozinha, mas tem uma data de filhos e noras e genros e, aos sábados, vai tudo almoçar lá a casa. Claro que se beijocam e abraçam todos, e mal entram em casa tiram logo as máscaras, é uma alegria.
E em vez de lhe dizer “obrigada pelo teu cuidado”, não, deixou de lhe falar. Que sabia muito bem o que estava a fazer, que aquela era a família dela, era o que faltava que não pudessem estar todos juntos uma vez por semana!
É por essas e por outras que já nem me apetece ir à janela.
Este prédio já viu tanta coisa—com janelas abertas ou fechadas… Já houve um cinzeiro a voar de uma janela para a rua e nunca se soube porquê ou quem o atirou. Já houve polícia sempre a vigiar esta rua no tempo da outra senhora….
(Deixem-me fazer aqui uma pausa, porque esta é uma expressão que sempre me intrigou: que raio quererá mesmo dizer “no tempo da outra senhora”? Neste caso, por exemplo, não havia outra senhora nenhuma, era o Salazar, e a D. Maria, a governanta, acho que não era assim tão importante, embora sempre me lembre de ouvir dizer que era ela que mandava…Enfim, adiante)
Pois no tempo da outra senhora havia sempre polícia a vigiar tudo. Acho que era sobretudo por causa do Sr. Dr., que era jornalista e de vez em quando escrevia umas coisas de que a “outra senhora” não gostava. E lembro-me de há muito tempo ouvir dizer que no prédio ali em baixo, aquele onde mora a Rosa, tinha sido morto um homem. Falou-se que era da polícia, mas nunca mais ninguém disse nada e se calhar hoje já ninguém se lembra disso.
Está fresco e chuvisca. Hoje é domingo e apetecia-me ir ali ao café, mas agora ao fim de semana está fechado, porque toda a gente tem de estar enfiada em casa aos fins de semana a partir das três da tarde. Vou amanhã, também não é grave.
Enfio-me aqui no sofá, cubro as pernas com uma mantinha de lã que a minha Perpétua acabou de fazer há dias. O confinamento também é bom para isso. Lembro-me que no primeiro confinamento ela fez três mantas, cinco cachecóis, quatro xailes, e seis gorros para os miúdos. Neste ainda só teve tempo de fazer esta manta. Mas vai continuar, com certeza.
E começo a fazer palavras cruzadas.
As coisas que aprendemos a fazer palavras cruzadas….Rio da Suiça?—Aar ; fechar as asas para descer mais depressa?—Ciar ; medida itinerária chinesa?–Li ; terceiro estômago dos ruminantes?—omaso… e por aí fora… Não sei se nos serve para alguma coisa mas ficamos a saber imenso. E nos tempos normais em que se podia ir ao café, eu e o meu amigo Crispim, outro maníaco das palavras cruzadas ,despedíamo-nos sempre com a expressão “muitos ósculos e amplexos”, que era o mesmo que dizer “muitos beijos e abraços”.
O bom que têm as palavras cruzadas—para lá de nos darem uma enorme sabedoria—é darem-me sono. Ao fim de meia hora, estou a tombar.
Como agora.
Vou fechar a janela
Vou dormir.
Boa noite.
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