“Qualquer dia morro aqui estatelada no chão e ninguém dá por isso…”

36ª Crónica de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Já não aguento mais… Qualquer dia morro aqui estatelada no chão e ninguém dá por isso… Acho que vou arriscar mesmo e vou até à rua. Quando é que eu alguma vez pensei em descer estas horríveis escadas sozinha? Tenho a certeza que o fantasma do senhor Juiz, que um dia caiu por elas abaixo e morreu, me há-de perseguir o dia inteiro. Mas vou arriscar. Quero lá saber de fantasmas! Mas, como dizia a minha mãe, eles nunca nos abandonam.

Uma vez, era eu miúda, lá em Fonte Boa de Baixo, a minha mãe mandou-me ir buscar uma certidão de nascimento do meu pai, que estava dentro de uma gaveta cheia de papelada num móvel no sótão onde ele passava o tempo todo. Ninguém lá entrava senão ele. E depois de ele ter desaparecido, também ninguém se interessou por isso.  Lá subi as escadas que iam dar ao sótão, remexi naquela porcaria toda, poeirada e mais poeirada, e finalmente encontrei o papel que a minha mãe queria. Ia a descer as escadas quando, sem eu entender como, caí e vim a rebolar até cá abaixo.

Choraminguei quando a minha mãe apareceu.

-Ó mãe, não sei por que é que eu caí… Não tropecei em nada…

Ela encolheu os ombros e pareceu não se importar muito.

–Claro que não tropeçaste… Nem caíste.. 

Olhei espantada para ela, e para a nódoa negra na minha perna.

–Claro que não caíste… Tu foste empurrada… Ali era o sítio onde o teu pai estava sempre. Foi ele que te empurrou…Sabes  perfeitamente que ele não gostava de ti…Nem de nós… Por isso é que eu nunca vou ao sótão…Tenho a certeza de que também vinha pelas escadas abaixo…Eles atormentam-nos a vida inteira…

Mas o Senhor Juiz nem me conhecia, por isso não há-de haver azar.

Eu gostava era de ter alguém que me viesse buscar, e se preocupasse comigo como aquela catraia que passa muitas vezes aqui na rua e está sempre a chamar pelo Doutor. Por acaso aqui há uns tempos ia bem acompanhada  e não era o doutor… Mas ter um namorado agora, também não deve dar jeito nenhum, ninguém se pode abraçar, ninguém se pode beijar. Raio de tempo. Tenho a certeza que o meu Joãozinho, se cá estivesse, também me ajudaria muito.

E por falar em Joãozinho, nestes últimos tempos nem abro a televisão que ele me instalou cá em casa. Ou então só abro muito à noite, para ver aquelas séries de polícias, e ladrões, e assassinados, sobretudo aquela de um detetive vesgo, com uma gabardina que nunca deve ter sido lavada, charuto a cair da boca— mas que adivinha tudo.

Agora, estar sempre a ouvir noticiários, e quantos morreram, e quantos vão morrer hoje, e quantos morrem  amanhã , e onde é que estão a morrer mais, e onde é que estão a morrer menos– isso é que nunca. Dava-me um ataque de coração e morria logo ali. Porque não é só do bicho que se morre.

Bom, vou mesmo arriscar : vou buscar a minha bengala, que sempre me ajuda a descer as escadas, espero que os meus fantasmas estejam interessadíssimos a ver os programas da tarde da televisão, e vou até ao café.

Há quantos anos não entras num café, Socorro? É melhor nem fazer contas.

PÓ DE ARROZ E JANELINHA: Os folhetins da Alice Vieira e da Manuela Niza para se manterem ocupadas durante quarentena.

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