“Preparei o tabuleiro com um belo prato de cozido”.

15ª Crónica de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza para se manterem ocupadas durante a quarentena.

Preparei o tabuleiro com um belo prato de cozido (bendita Rosa!), um copo de vinho e sentei-me na sala defronte da televisão, pronto para jantar . Sempre detestei comer sozinho e o aparato faz-me companhia à falta de melhor.

Ora cá está algo impensável antes desta prisão forçada e sobretudo nos tempos em que esta casa estava cheia de vida. As refeições sempre foram feitas na sala de jantar onde não existia televisão, com mesa a preceito. Nisso eu e a Patrícia éramos muito parecidos. Coisas de educação que não se perdem, por muitos anos que passem. Mesmo aqui, de tabuleiro nos joelhos, há preceitos de que não abdico: naperon à laia de toalha, guardanapo de pano, talheres adequados e tudo, tudo.

O que o berço dá, só a tumba tira. No meu caso não apenas o berço que, senão foi de ouro pelo menos foi de prata fina, mas o Colégio Militar, onde meus pais me deixaram com pouco mais de dez anos. Lembro esse dia como se fosse hoje e tal como então assalta-me ainda, passados todos estes anos, a mesma sensação de abandono, a mesma vontade de correr para os braços da minha mãe que insistira em acompanhar-me e que fazia um enorme esforço por sorrir encorajando-me enquanto engolia a custo as lágrimas.

Filho tardio do senhor de Castelo Belo, Coronel na reserva, até àquela data o meu mundo tinha sido, as ruas da aldeia e a liberdade de correr sem rumo, pelos  campos raianos. Espanha ficava ali à distância duma pedrada e para nós, pequenos e graúdos habituados ao convívio diário com o “outro lado,” a fronteira era uma coisa que só existia num posto distante vigiado por guardas dum lado e do outro. A nós não nos fazia diferença: nunca por lá passávamos. E para quê se o podíamos fazer por entre as giestas e os carreiros, que não conheciam diferença alguma?

Só muito mais tarde entendi, dolorosamente, o que significava “passar a salto” para o lado de lá.

A aldeia tinha apenas uma escola primária e embora não fossem permitidas turmas mistas, ali não era necessário qualquer separação. Não me lembro de ver uma única rapariga na sala de aula. Até o professor era um homem. Respeitado, tanto quanto o padre e o meu pai, as pessoas cumprimentavam-no tirando os sebosos bonés e à sua passagem as mulheres amortalhadas em negro, baixavam os olhos em sinal de reverência enquanto saudavam com vozes quase sussurradas.

Não tinha amigos na aldeia. Tinha sim companheiros de tropelias e de grandes cowboyadas, mas para eles fui sempre “ o menino”, o único que andava calçado todos os dias da semana e em todas as ocasiões.

Os meus primeiros amigos, aqueles que me ficaram para a vida, conquistei-os no Colégio, se bem que naquele primeiro dia ainda o não soubesse e tudo o que desejava era voltar à liberdade da minha aldeia.

Mas as opções eram poucas: ou isso ou o Seminário. Ora o meu pai não tinha um filho único para entregar a Deus e ficar sem descendência. Pelo menos legitima e que pudesse herdar sem mácula o título de senhor de Castelo Belo.

Ainda se colocou a hipótese de ir para Coimbra onde tínhamos familiares, mas o meu pai sabia bem o que tinha em casa. Disciplina, disciplina era o que eu precisava! A continuar à solta, corria o risco de me tornar um selvagem. Por mais que uma vez tinha chegado a casa sem sapatos, sujo e roto, em tudo parecido com qualquer miúdo da aldeia. E era isso que queria: ser igual a eles, ser um deles.

Já nessa altura me fazia impressão levar para a merenda um pão recheado de marmelada e os  olhares gulosos e tristes dos mais afortunados que comiam cebola com sal e dos outros que por nada terem se afastavam envergonhados. Está bem de ver que a merenda era sempre repartida e a cada dia maior. “ Este rapaz tem a bicha solitária, minha senhora! Olhe que só hoje levou quatro pães de merenda! “-  queixava-se a Clotilde . A minha mãe sorria e passava-me a mão pelo cabelo crespo enquanto o meu pai, mais alheio,  dizia com orgulho “ Está a deitar corpo, é normal.”

Mas o que não era normal era eu não passar dum trinca espinhas (nome que me ficou anos a fio no Colégio) por mais pães que “ comesse”.

Foi no Colégio Militar que me fiz homem. E se aí aprendi a disciplina e o rigor que ainda hoje me levam a fazer a cama com um esmero que nunca a Patrícia conseguiu igualar, ou a manter impecável tudo à minha volta, foi também aí que despertei para a política, que tomei consciência do que significava ser duma outra classe social, das diferenças abissais que existiam no Portugal de então.

Foi aí que contactei pela primeira vez com o Partido e com os movimentos contra o regime. Aliás foi aí que entendi que havia um regime! Li livros que constavam dum codex muito próprio da ditadura e que chegavam clandestinamente a certos círculos de alunos e professores. Não tardei a fazer parte dos mais activos e politizados e embora nada do que fizéssemos traísse as convicções que íamos adquirido, aos poucos construíamos  a personalidade que adotaríamos para quando fossemos para o mundo fora dos portões do Colégio.

Para mim estava claro: seria jornalista. O diabo era convencer o meu pai que me tinha o destino traçado e para o qual me dava toda a liberdade de escolha : ou advogado ou veterinário. Se bem que, tal como me fazia claramente entender, um advogado sempre era um Advogado!!!

Foram tempos felizes, muito felizes, esses. Do Colégio a parte Militar era a menos importante. Mais do que tudo, era o estrito código de conduta, de lealdade para com os outros e nós próprios que imperava. E esses foram os meus guias pela vida fora.

Bem deixa-me lá fazer as honras a este cozido que cheira divinamente. Acho que vou sintonizar uma série qualquer, porque se me ponho a ver noticiários estrago a comida e azeda-se-me o vinho!

Ver todos os capítulos aqui: “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”