“Peguei no Trotsky ao colo e fui até à varanda.”

23ª Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Peguei no Trotsky ao colo e fui até à varanda. Há gente na rua e nunca tal coisa me pareceu tão fantástica. Apeteceu-me desatar aos saltos e gritar “BOM DIA” a cada um dos mascarados. Sim, tem o seu quê de ridículo, mas tudo é preferível a esta prisão domiciliária. São ainda muito poucos, nada como o normal. Mas eles falam de “nova normalidade” e se calhar é isto…

Ontem ouvi dizer que hoje abriam os cafés. De repente senti que matava por uma “bica”, sentado numa esplanada!!! Nenhum homem é uma ilha e sobretudo nenhum homem é uma ilha desabitada.

Pensei em quem podia desafiar para me fazer companhia neste primeiro dia de desconfinamento. De telemóvel na mão, olhando a rua e respirando um ar que, de repente, me pareceu mais leve e puro, desatei a ligar.

Depois de não sei quantas negas – “Ó pá deixa estar, eu cá não arrisco. Não vou deitar tudo a perder agora…” apercebi-me que o raio do vírus tinha conseguido o que nem 48 anos de ditadura fora capaz: transformar homens e mulheres de reconhecida coragem em presos voluntários do medo. Até o Tavares, o Tavares!!!, que esteve preso, que foi torturado, que foi mandado para a Guiné combater numa guerra que ele denunciava com os seus escritos e a sua clandestinidade, até esse me respondeu que talvez ainda fosse prematuro.

Fiquei atónito!! Mas isto é que seria a nova normalidade? Passarmos a estar presos em casa, ligados a um computador, a interagir através das redes sociais? E os afetos? Onde ficam o toque, o olhar nos olhos dos outros, os cheiros das estações e dos que amamos? Onde fica então o sabor do beijo? Ou será que decidimos não mais beijar, não mais abraçar, não mais viver? Evidentemente que há que ter cuidados.  Olha lá, tudo de máscara, tudo a passar para o outro passeio se vê alguém aproximar-se. Claro que sim. Mas ficarmos eternamente presos? Nã!! isso não é para mim. Com cautelas e caldos de galinha, sim senhor, mas morrer da cura é que não.

Liguei à Rosa,

– Ouve lá, ó cachopa, tu tens máscara? atirei à queima-roupa.

– Bom dia para ti também Matias. Tenho sim. porquê? Precisas duma?

– Não, não. O jornal que me deste outro dia ofereceu-me uma, tenho-a ali ainda virgem. Que me dizes de irmos tomar um café para celebrar o desconfinamento?

Ela hesitou durante uns segundos que me fizeram pressagiar uma nega.

– Está bem. Parece-me que a “Virtudes” já cá tem fora umas mesas. Encontramo-nos lá.

Acho que nem me despedi. Atirei-lhe um “Ok” e corri à procura da máscara, das chaves, numa excitação de prisioneiro libertado.

Abri a porta do prédio e aspirei através do tecido o cheiro da minha rua. Senti-me tão feliz que quase me emocionei. Coisas de velho!!!-

Com passo largo dirigi-me à “Virtudes”, a confeitaria que teve durante muito tempo o nome do dono, que, entretanto, morreu, e que foi a minha segunda casa até ao início deste pandemónio. Na rua não posso dizer que me tenha cruzado com alguém. Três pessoas no máximo. Duas do outro lado do passeio e outra que atravessou a rua assim que me viu.  O medo é uma coisa difícil de vencer. Mas tenho que concordar. É preciso ter cuidado, que o bicho espreita ainda por perto, e se tínhamos até ao momento conseguido quase um milagre não devíamos deitar tudo a perder. Mas retomar aos poucos a vida é imperioso.

A esplanada e a confeitaria estavam às moscas, por isso sentei-me numa das quatro mesas cá fora olhando em redor. Tão linda esta minha rua. Não tinha nunca reparado como era bonita.

O empregado apareceu-me de viseira à porta e desde ali perguntou-me o que queria.

Passado um pouco apareceu a Rosa, também ela disfarçada, e sentou-se na mesa ao lado. A distância era para manter, mas aquela proximidade era tão, mas tão boa, que desatei a rir como um miúdo a quem tivessem dado um enorme presente.

– Os planos estão feitos. Toca a ir ao banco, disse-lhe.

Ela riu.

– Nunca pensei assaltar um banco, mas olha que agora que falas nisso…

As bicas chegaram à distância dum braço firmemente estendido pelo empregado. Reparo que usa luvas e que à entrada da pastelaria há um dispensador de desinfetante. Ah grande povo este!! E ainda dizem que somos pequenos e insurretos. Pequenos talvez, mas previdentes e conscientes, sem dúvida.

Tirámos as máscaras com cuidado e levámos as chávenas à boca. Senti-me no céu!

Falámos de tudo e de nada, da nossa vida entre quatro paredes, dos que nos são queridos, dos que temos saudades… rimos e emocionamo-nos, como dois prisioneiros que tivessem cumprido pena.

– E agora? perguntei-lhe.

– Agora continuo a dar aulas pela net, o que é um desafio, mas que, curiosamente, está a correr bem.

– Vais manter-te por casa, portanto.

– Que remédio. Mas faz-me falta o burburinho dos miúdos, o convívio na sala dos professores… mas, enfim, os tempos estão a mudar, como cantava o Bob Dylan.

Fico a pensar. De facto, a mudança é enorme. Só espero que para melhor e que não nos tornemos “bichos do mato”, intolerantes, receosos dos outros.

– Sabes Matias, eu ainda acredito no melhor do ser humano. Acho que vamos superar isto com nota máxima. Tenho muita esperança.

Ah, a esperança dos jovens! Enquanto houvesse, o Mundo jamais estaria perdido!

– Ouve cá, ó Rosa, nunca me contaste como e porque foi que voltaste aqui à rua…

Ela acendeu o segundo cigarro e aspirou longamente.

– Fui muito feliz e muito infeliz aqui. Mas se há um sítio onde tenho raízes é nesta rua e na minha casa.  O meu padrasto era um homem rico, como sabes, e foi realmente um pai para mim. No fundo, o único que tive depois de me terem roubado o meu. Com a morte dele e da minha mãe, fiquei com um pé de meia simpático que me permitiu a loucura de comprar a casa onde nasci. Pronto, foi isso, um retorno às memórias.

Uma pontada de culpa percorre-me o corpo. A verdade que intuíra durante todos estes anos saiu como uma avalanche sem eu mesmo ter dado por isso.

– Sabes que a prisão do teu pai foi um erro. Era a mim que eles queriam. Era eu o comunista, o alvo a abater. O teu pai teve o azar de morar na mesma rua, trabalhar no mesmo jornal e ter um nome parecido com o meu. A PIDE também tinha gajos burros e no afã de mostrarem serviço nem sempre reverificavam como deviam. Sinto-me sempre culpado cada vez que penso nisso.

A Rosa ficou muito calada e durante aquele tempo pensei que tinha perdido a única amiga que me restava.

– Não te culpes Matias. Não foste tu quem entrou casa adentro naquela noite que o levou preso, que o denunciou. Eu sempre soube que tinha havido ali um erro qualquer. Mas quem é que discutia com aqueles tipos? O meu pai também tinha as suas ideias. Não sei se era membro do partido, mas sei do seu descontentamento e da sua revolta. Ouvi-o muitas vezes falar com a minha mãe em saírem daqui, irem para França, para a Alemanha, para um lugar qualquer que os deixasse respirar. Acho que não o fizeram por minha causa. Eu era tão pequena na altura… Não podiam deixar-me para trás e levarem-me para o desconhecido também não era opção. O tempo encarregou-se de fazer justiça. Pelo menos alguma justiça. Não penses mais nisso. Eu já não penso.

Quero tocar-lhe nas mãos, mas sei que não devo. Raio de bicho que não nos deixa sequer reconfortar-nos à vontade.

– Sabes que o bufo que o entregou, a ele e sei lá a quantos mais, morreu?

Ela apagou o cigarro.

-Sei. Que arda no inferno é o que eu lhe desejo.

Olho-a nos olhos, por sobre a máscara que, entretanto, pôs, e pela primeira vez vejo um ódio que o tempo não apagou e que não lhe conhecia.

De volta a casa esse olhar persegue-me. Pobres Rosas da ditadura. Quantas delas guardavam ainda no peito um sentimento assim?


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