“Será que esta porcaria do vírus teve coisas boas?”

42º Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Será que esta porcaria do vírus teve coisas boas?

Cruzes,credo, claro que nem estou em mim com certeza para imaginar coisas destas.

Mas às vezes fico  pensar…

Quando é que a Rosa alguma vez subia cá a casa para me fazer companhia? E o Sr. Doutor, que há dias ia a entrar no prédio e me viu à janela e disse:

“Olá, D. Socorro, tudo bem com a senhora?”

Até fiquei sem fala e quando lhe respondi já ele tinha entrado.

Isto anda por aqui qualquer coisa que eu não entendo.

Há dias ao telefone com o meu Joãozinho estava-lhe exactamente a falar disto.

“Não entendo nada, meu filho. Dantes ninguém falava com ninguém ou então eram cá umas mesuras e salamaleques…”

“Salama…quê?”

“…leques, filho, leques”

“Porquê, estava assim tanto calor para se andarem todos  a abanar? Olhe, se estivessem aqui em Inglaterra é que lhes fazia bem… Aqui…”

Deixei-o a falar sozinho…Pode ser muito bom enfermeiro e perceber muito de televisões,  mas a falar é uma desgraça.  É tudo “iá, OK , vamos nessa…”

Eu mal aprendi a ler e a escrever. A minha senhora é que me deu mais umas luzes… Até me ensinou uma poesia que nunca mais esqueci : “ó Maria/ diz àquela cotovia/ que cante mais devagar/ não vá o João acordar…” Uma vez até a disse ao meu João, mas ele não vibrou muito… Mas mesmo assim, sou capaz de entender o que as pessoas dizem. Mas esta gente nova… Sim porque não é só o João… Naquele dia em que me aventurei a descer as escadas para vir à rua (e que bem me soube…) decidi ir fazer uma coisa que desde o Covid nunca mais tinha feito: fui aos Correios. São mesmo no fim da rua, só tive de esperar que saísse um rapaz para depois entrar eu, e a menina Anabela fez-me uma grande festa, vá lá, reconheceu-me mesmo com a máscara.

Antes do vírus e das máscaras, eu ia lá às vezes mandar umas encomendas para o meu João…Coisa pouca, claro, mas para ele não se esquecer da sua terra—uma lata de atum, um bocadito de chouriço—e , se não havia muita gente, ficava sempre à conversa com a menina Anabela.

Quando la cheguei estava a rir que nem uma perdida.

“Ó D. Socorro, viu aquele rapazito que saiu? Então não é que me entregou uma carta e me perguntou se estava tudo bem, eu disse que sim, e ele outra vez “tudo? Tem a certeza?”, e eu “sim”, e ele “é que lá no escritório mandaram-me pôr… ai o que era… era assim uma palavra  muito esquisita…deixe ver… “remessa”? terá sido?” , e eu “não terá sido “remetente”? E ele “isso, era mesmo isso… As pessoas agora usam cada palavra que eu nem sei como é que vocês se entendem”…

E lá ficámos as duas a rir… Ainda pensei contar-lhe a dos salamaleques…mas não contei. Coitadinho do meu João,  um dia pode haver vacina para o Covid, mas para a ignorância, nunca.

Mas voltando ao que eu estava a magicar (outra palavra que o João também não deve saber…), isto anda aqui qualquer coisa que  não entendo. A Rosa, para lá de estar simpática, anda com um sorriso de orelha a orelha como nunca lhe vi…

Passarinho novo?

Quem sabe…


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