“Os avós na vida das filhas da Ana Rodrigues”

Podia ser Abril águas mil, mas o que este abril me trouxe foram mil estranhos estados de alma. É que noutros tempos recheava o mês de festas e risos. De almoços de família aos domingos, de surpresas de aniversário. De beijos e abraços aos meus irmãos, sobrinhos e pais. Os melhores avós que poderia escolher para as minhas filhas. Mas não foi assim. Não tem sido assim.

Foi diferente. Foi mais triste e solitário este mês de Abril, que logo no fim de março mostrou que não ia ser de carinhos partilhados.

O meu irmão Joaquim, que celebra aniversário no dia 31 de Março, fez-se de forte e tentou sorrir por detrás da máscara de pano quando lhe levei o bolo ao trabalho. Não podemos dar um abraço apertado. Daqueles que aprendi com os anos a valorizar e a querer saborear bem devagarinho.

Mas ainda a procissão ia no adro e já o aniversário da minha mãe batia à porta. Foi no dia 5 de Abril. Neste dia, a mãe São comemora o dia em que nasceu, mas também o dia do seu casamento. Que é como quem diz, o dia em que nasceu a nossa família. Mais uma vez levei o bolo até à porta. Eu, o meu marido Manuel, as filhas, a irmã Nela e os sobrinhos do meu coração, o Pipo e a Joana. Cantámos os parabéns na rua. Na praceta que me viu menina e de onde saí para casar e seguir o meu caminho. Muitos dos vizinhos ainda são os mesmos. Já idosos e obrigados a um confinamento obrigatório assistiram pela janela a este estranho aniversário.

Dias depois lá estávamos nós outra vez. No mesmo sítio. Na mesma praceta. De bolo na mão e voz embargada a cantar os parabéns. Foi no dia 9 que nasceu o pai Joaquim. O avô de 81 anos que quando as minhas gémeas nasceram ia todos os dias lá a casa para lhes dar o banho morno e a cheirar a amêndoa cor de rosa.

Ele chegava depois de quase 12 horas de trabalho na oficina de automóveis que fez nascer a custo e que hoje é uma referência. Que ajuda preciosa foi aquela. Como eu aguardava com alegria a sua chegada para me aliviar dos ombros a carga que era cuidar de três crianças pequenas (a mais velha, a Mónica tinha 2 anos quando as manas nasceram) e ao mesmo tempo não descurar das tarefas de casa. Como foi difícil.

Mas o avô lá chegava e eu, depois de encher a banheira portátil, ficava a olhar, de lagrimas nos olhos para aquele homem cansado, duro e pouco dado a emoções, a segurar as netas com todo o cuidado para não molhar os seus rostos pequeninos. Nunca fui capaz de lhe dizer que por vezes dava comigo a olhar para aquelas mãos grandes, com óleo dos carros entranhado e a pensar como aquilo não era nada higiénico. Ele bem que dizia que esfregava as mãos, antes de entrar em minha casa, mas já não havia muito mais a fazer.

Nunca lhe disse que aqueles pensamentos me vinham à cabeça. Até porque eles não duravam muito. Rapidamente davam lugar a tanta ternura e amor por aquele homem. Sempre acreditei que o amor que as netas recebiam naqueles banhos diários, lhes iria entranhar bem mais na pele que qualquer óleo de motor.

Tinha razão. Porque hoje, 18 anos depois, o amor entre avô e netas mantém-se inabalável. Ele diz que vive por elas. Para elas. As netas dizem que nem querem imaginar o dia em que o avô não estiver neste mundo. Garantem a pés juntos que ele vai viver até aos 100 anos e mais ainda e ele está determinado a fazer-lhes a vontade.

Em tempos de pandemia tem sido um desassossego. O avô teima em ir à oficina, onde sempre foi o 1º a chegar e o último a sair. As netas reclamam, choram com medo que o malvado vírus lhes leve o avô querido. Pedem por videochamada que o avô fique em casa. Ele promete só para não as ver chorar, mas sabe que não vai conseguir cumprir a promessa. Elas ainda acreditam. Eu finjo que também e entrego a sua vida nas mãos de Deus. Todos os dias à noite.

Este ano, no dia dele, sempre tão especial para nós. Altura em que lhe faríamos um almoço com toda a família e amigos, só para lhe mostrara o quanto é amado, o quanto é especial, os avós festejaram sozinhos.

Tal como com a avó São, levámos o bolo com corações, sem leite porque lhe faz mal. E as netas escreveram uma carta para lhe entregar. Uma carta de amor. Afinal ele diz que não quer presentes, e o que mais adora nesta fase da vida é que lhe escrevam cartas. Foi amor que levámos em forma de parabéns, cantados à porta de casa. Só para o ver sorrir. E não era um vírus qualquer que nos ia tirar isso.

Ana Rodrigues é jornalista há mais que 30 anos. Diariamente podem ouvir a sua voz através dos microfones da Rádio Renascença.