” O QUE FICA POR DIZER”

“O QUE FICA POR DIZER”

Crónica publicada no Jornal de Mafra

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O QUE FICA POR DIZER

Todos sabemos como às vezes é difícil dizer em voz alta coisas que até tínhamos vontade de contar aos outros.

Falar, de olhos nos olhos, custa. Nem sempre as palavras saem ou, quando saem, parecem-nos estranhas, como se não tivéssemos sido nós a pronunciá-las. E há assim uma espécie de vergonha por termos falado.

Recentemente, numa escola infantil em Denver, nos Estados Unidos, uma jovem professora mandou os seus alunos escreverem um pequeno texto, subordinado ao tema: “aquilo que eu gostava que a minha professora soubesse”

E os resultados foram surpreendentes:

–“gostava que a minha professora soubesse as saudades que tenho do meu pai, deportado para o México quando eu tinha 3 anos”

— “gostava que a minha professora soubesse que ninguém quer brincar comigo no recreio”

— “gostava que a minha professora soubesse que, se às vezes não trago os documentos assinados, é porque a minha mãe está muito pouco tempo em casa.”

— “gostava que a minha professora soubesse que, se às vezes não faço os trabalhos, é porque não tenho lápis em casa”

— “gostava que a minha professora soubesse que, se às veze chego à escola com sono, é porque tenho de tomar conta da minha irmã mais nova e ela chora a noite toda”

…e por aí fora.

Infelizmente, tenho quase a certeza de que, se as professoras fizessem o mesmo por cá (e, possivelmente, algumas já o terão feito..) haveria decerto respostas muito mais preocupantes…

Desde há mais de 30 anos—ou seja, desde o dia pré-histórico em que publiquei “Rosa, Minha Irmã Rosa” …– que recebo muitas cartas de crianças. Que, apesar de todas as novas tecnologias, durante estes anos todos nunca deixaram de me escrever.

Crianças que vi ficarem adolescentes.

Adolescentes que vi ficarem jovens.

Jovens que vi ficarem adultos.

Na sua esmagadora maioria eram raparigas e, também na sua esmagadora maioria, a primeira carta começava sempre assim:

“escrevo-te porque não sou capaz de dizer estas coisas em voz alta”

Às vezes, já mais velhas, quando eu lhes propunha encontrarmo-nos para uma boa conversa—quase ninguém aceitava:

“Tenho a certeza de que, se te conhecer pessoalmente e nos encontrarmos, nunca mais tenho coragem para te contar aquilo que conto.”

E o que me contavam era a sua vida de todos os dias: as relações por vezes complicadas com os pais, ou com as professoras, as más condições em que viviam (nunca me esqueço do Afonso que, há muitos anos, a justificar a má caligrafia, dizia “a caneta é muito mais leve que a enxada…”) — e eu a ter de tratar tudo com pinças, mas que elas e eles soubessem sempre que eu estava, incondicionalmente do seu lado.

É por isso que hoje, dessa legião imensa das “minhas meninas” (que ainda mantêm contacto comigo, já casadas, mães de família, advogadas, jornalistas, médicas, professoras, investigadoras no estrangeiro, etc..) contam-se pelos dedos da mão aquelas que conheço pessoalmente. E as que conheço, só as encontrei em carne e osso muito tardiamente, com elas todas já a fazerem pela vida.

E eu percebia.  Porque, nalguns casos, os problemas eram tão complicados e a vida delas tão dura, que tudo aquilo que queriam era apenas poder desabafar com alguém, sabendo que esse desabafo nunca iria chegar a outros ouvidos. Ou a outros olhos.

Vivemos num tempo em que, agarrados aos seus smartphones, já quase ninguém fala. A conversa praticamente desapareceu. Aqui há dias estava eu com a minha filha a jantar e, evidentemente, a conversarmos e a rirmos—quando uma senhora de bastante idade se aproxima de nós e pergunta se podia ir para a nossa mesa porque lhe apetecia imenso conversar e, segundo dizia, a filha “era muito caladinha.” Foi um jantar extraordinário, porque a senhora tinha imensas histórias para contar e foi um prazer estar com ela.

 

Este ano ainda começou há pouco (sim, é verdade, o chinês da minha rua já esta a abarrotar de coisas de carnaval…), por isso talvez não fosse má ideia pensarmos um pouco nisto.

Falar com os outros.

Custa assim tanto?

Pelo menos dar os bons dias aos que estão no café quando nós entramos…

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A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.

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