“O Mundo está mudado! Agora só de máscara se entra num banco!”.

41º Capítulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Dizem que o músculo do coração, como qualquer outro, tem que ser treinado para se fortalecer, com alegrias, surpresas boas, sustos e medo.

Hoje o meu, que batia tranquilamente há muito tempo num ritmo de passarinho como compete a qualquer músculo que se preze e que chegue à idade dos noventa, teve uma actividade que no mínimo o rejuvenesceu para mais uma década.

Foi um dia maravilhoso, daqueles que nos fazem dar graças por estarmos vivos, por podermos desfrutar de tudo quanto esta passagem pela vida nos oferece a cada momento.

Começou logo pela manhã com uma enorme gargalhada que que me trouxe lágrimas aos olhos e me deixou sem fôlego.

Fui pôr-me à janela à espera de ver passar a Rosa Maria e a pensar com os meus botões como era bom ver de novo gente na rua, para cima para baixo, mesmo com meio rosto tapado. Se bem que a maioria só coloca a máscara quando se cruza com alguém, que aquilo faz um calor que nem vos digo. E eu só a usei uma vez quando o marçano veio entregar as compras logo no início do desconfinamento. Foi uma vez sem exemplo.  Decidi que mantínhamos o ritual antigo de me deixar as compras cá em cima sobre o tapete e tocar à campainha. Eu entretanto deixo-lhe num envelope o dinheiro das compras anteriores e  … em paz!

Até esta coisa do bicho se ter instalado entre nós era a menina da Segurança Social quem, todos os meses, ia ao banco levantar a minha pensão ou tratar das contas que fosse preciso.

Ora a partir duma certa altura e com a desculpa de protegerem os velhos, acabámos por ficar para aqui abandonados e pronto.

Bem… para ser sincera no meu caso não foi assim.  Já contei que me desentendi com ela  e que a mandei passear. Nessa altura a coisa estava controlada porque o meu João ainda cá estava e passou ele a levantar o dinheiro e a pagar na maquineta o gás, a luz, a água e o que mais houvesse.

Com a ida dele lá para a terra da Rainha fiquei sem o meu Príncipe e a coisa complicou-se.

Mas embora eu nunca tenha sido de grandes missas e terços, o certo é que devo ter um Anjo da Guarda daqueles muito bons, pois na mesma altura em que começaram a falhar as economias que sempre tenho guardadas para uma necessidade, foi quando a Rosa Maria começou a aparecer cá pela rua e a parar por baixo da janela ou a tocar à campainha, a saber se preciso de alguma coisa.

Rapariga como aquela há poucas!! Feliz do homem que a levar…

Pois dizia eu que me pus à janela com o fito de a ver surgir na rua. Precisava que me fizesse o favor de me ir pagar as contas e de me trazer dinheiro. A minha geração confia mais no colchão onde se deita do que nos bancos onde qualquer um pode deitar a luva ao que não lhe pertence. O pé de meia sempre à mão, é o que toda a vida ouvi dizer .

Para fazer tempo, tentava adivinhar as caras por debaixo das máscaras “ Aquele pelo andar parece-me o genro da Aninhas. Esta é a Goretti de certeza. Aquele corte de cabelo e a forma de abanar as mãos enquanto caminha não deixam dúvidas. Este não faço ideia nenhuma quem seja.” 

Até que a vi surgir descendo a rua naquele passo que já reconhecia bem e que era o mesmo passo de menina. Só com pernas maiores evidentemente.

Vinha sem máscara porque o passeio deste lado estava vazio e assim que me viu acenou-me. Fiz-lhe sinal para que subisse e abri-lhe a porta da rua sem esperar pelo toque.

Entrou mascarada, pois claro, mas depois defronte do chá e à distância regulamentar, pusemos-nos ambas à civil.

Não ficou muito tempo, estava apressada. Ai estes jovens sempre a correr sem se darem conta que correm para coisíssima nenhuma. Pouco depois levantou-se.

– Então está combinado . Deixa-me lá pôr a máscara e ir ao banco. Aproveito e tiro dinheiro para mim também.

Olhámos uma para a outra e desatámos numa gargalhada.

O Mundo tinha de facto mudado! Agora só de máscara se entra num banco. Quem havia de dizer eihn???

Ver todos os capítulos aqui: “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”