O MELHOR PÃO DO MUNDO
Nunca soube o que é ter colo e receber beijos de uma avó. Quando era pequeno, e me apercebi que os meus colegas tinham avós e falavam dos mimos com que elas os embrulhavam, fiquei muito triste. Quase todos tinham quatro avós, e eu só tinha um avô, o avô António.
Os outros três avós, disse-me minha mãe, chamavam-se Teresa, Inês e José e moravam no céu. “Por cima das nuvens?” perguntei . Minha mãe assentiu com a cabeça. Eu tinha a certeza de que eles eram nossos vizinhos, bastava olhar com muita atenção para as nuvens que moravam por cima de Vilarelho.
Nesse tempo, a minha mãe era muito alta, tinha o cabelo apanhado num carrapito que segurava com ganchos muito finos.
Foi a partir dessa revelação que eu passei a gostar de me deitar de costas em cima da erva dos campos para ver se descobria o que estava para além das nuvens. Hoje, ainda gosto.
Vi muitas árvores a correr, cavalos a nadar, bocas abertas de monstros horríveis e anjos a tocar concertinas. Mas, por mais que me esforçasse, nunca vi as minhas avós Teresa e Inês. Nem o meu avô José. Não havia retratos deles em nossa casa.
O meu avô José era carpinteiro. Com traves, caibros e ripas de castanheiro e carvalho era mestre em construir em cima das paredes das casas novas as armações para serem cobertas com cumes vermelhos e telhas francesas.
O meu avô José Mota, pai do meu pai Manuel Mota, não sabia ler nem escrever, mas percebia muito de triângulos isósceles, seus lados, vértices e bissetrizes, e outras geometrias que não nomeava desta forma, imagino, e não devo estar errado. Também sabia colmar as casas dos mais pobres com palha de centeio bem seca. As casas cobertas de colmo nunca tinham chaminé e, lá dentro, o fumo azedo das lareiras acesas fazia chorar toda a gente, mesmo quem estava alegre e apaixonado.
Um dia, perguntei ao meu pai como era o avô José. Meu pai disse-me que ele era alto e magro, e sabia fazer bancos, mesas e cadeiras. Uma vez fez um pião e deu-lho. Foi o melhor brinquedo que o meu pai teve. “E onde é que ele está?”, perguntei. Meu pai disse-o que acabou por rachar a meio depois de ter levado milhares de nicas de outros piões com ferros bem afiados.
Eu acreditei nessa história, e ainda gosto de acreditar.
Também gosto de imaginar um avô alto, magro, de mãos com dedos compridos em cima de uma casa a medir com a sua fita métrica articulada, e a serrar com a força dos braços as traves, os caibros e as ripas com uma serra ou um serrote muito bem limados. Será por isso que também eu gosto de trabalhar com madeira, e de xilogravura. Se a minha vida não fosse por outros caminhos, eu seria um marceneiro; havia de inventar móveis únicos, tentaria ser criativo e útil para os clientes que aparecessem no meu posto de trabalho.
A mulher do meu avô José chamava-se Inês de Jesus. Também não a conheci. Mas a minha mãe sempre me disse que ela sabia ler e escrever, era muito educada, e falava muito bem porque antes de se casar tinha estado a servir na cidade do Porto, numa casa de uns senhores ricos.
Inês é um nome bonito. Agora há na família tanta Inês, que já lhe perdi a conta.
Sempre que falava da avó Teresa, a minha mãe emocionava-se sempre. Ainda ontem aconteceu o mesmo. O nome completo da minha avó é Teresa de Jesus.
A minha avó foi a mulher do meu avô António. Eram analfabetos e lavradores das suas próprias terras. Criaram oito filhos. Um deles morreu, atropelado pela carrinha do sardinheiro. Foi muito azar porque, nesse tempo, passava na estrada um carro de hora a hora, ou nem isso.
A avó Teresa foi viver para cima das nuvens ainda muito nova.
Mas os filhos não se esqueceram dela. Teresa é um nome bonito. Agora há na família tanta Teresa, que já lhe perdi a conta.
Falta-me falar do meu avô António Pinheiro. O meu avô morava longe de minha casa. Quando a última filha se casou ficou a morar sozinho. Poucas vezes ia a casa dele, porque tinha de ir a pé e sem companhia.
Quando entrava em casa dele havia um cheiro diferente. Não sei definir o cheiro, mas lembro-me que era um cheiro que me agradava. Cheirava a fumo e maçãs. Então ele perguntava: “Toninho, queres pão de Amarante? Olha que nunca comeste pão tão como este? Queres?” Claro que queria. Então o avô António, abria a porta do forno de cozer o pão e retirava um bocado de broa. Era um pão duro, mais duro que um corno. Esse “pão de Amarante”, transformava-se no melhor pão do mundo.
Ainda hoje não dizia que não a um bocadinho desse pão que cheirava a avô.
Agora sou avô do Santiago, e espero que apareçam mais netos aqui por casa. O que dirão de mim, daqui por sessenta anos?
Mais sobre o escritor António Mota
Livro Mensagem do Avó
Verdadeiros tesouros para ler, reler e partilhar, estas Mensagens do Avô são antes de mais um surpreendente espelho das emoções que moldam o relacionamento entre avós e netos. Intemporais e universais, elas ficarão para a posteridade como uma ode ao amor genuíno