“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”
Segunda-feira – 29 de março 2021
Querida avó,
Espero que não te tenhas esquecido de alterar a hora de todos os relógios da tua casa.
Finalmente chegou a hora de verão. Gosto tanto! Apesar de ontem ter sido o dia mais curto do ano, já que nos subtraíram uma hora, este horário é sem dúvida o meu preferido.
Cá em casa, só preciso acertar dois relógios, o da cozinha e o do quarto. Os restantes são eletrónicos e acertam-se automaticamente (o do pc, o da box da televisão, o do telemóvel, o de pulso…).
Os meus avós maternos, quando estavam no campo, orientavam-se pela localização do sol. E, curiosamente, nunca falhavam por muito. Não tinham a precisão de um relógio suíço, no entanto a margem de erro era de aproximadamente 15m.
Como sabes, sou de uma “pontualidade britânica”. Penso que isso herdei do avô Alberto. Não chego meia hora mais cedo a lado nenhum, como o avô fazia, mas detesto atrasos. Uma vez que não faço ninguém esperar, irrita-me profundamente ficar à espera de alguém. Como se o nosso tempo não tivesse valor.
Recordo-me de em criança passar horas a acertar os relógios todos da casa dos avós paternos. O avô Alberto usava um relógio de bolso que eu adorava. Infelizmente, não faço ideia de onde foi parar esse relógio.
Como estava a dizer, não gosto nada do horário de inverno.
Quando serão abolidas as mudanças bianuais de hora? Esse assunto chegou a ser falado (noutra vida pois ,no último ano ,só de fala de pandemia), mas tenho ideia de a Comissão Europeia deliberar pela abolição do regime bianual de mudança de hora. Julgo que existiu uma consulta pública efetuada em todos os Estados-Membros, durante o verão de 2018. A maioria dos inquiridos, afirmaram ser a favor de se acabar com as mudanças de hora sazonais. Ficaria ao critério de cada Estado-Membro a escolha do regime de hora legal em que pretendiam permanecer.
Ainda em março de 2019, no Parlamento Europeu, os eurodeputados aprovaram a resolução. No entanto, consideraram a mudança em 2019 demasiado repentina,(ninguém gosta de mudanças rápidas) apontando o ano de 2021 para a entrada em vigor desta legislação. Entretanto veio a pandemia e o assunto ficou esquecido.
Penso que o Parlamento Europeu sugeriu a cada Estado-Membro a realização de consulta pública e a avaliação do impacto da introdução destas medidas, optando então de forma permanente pelo regime de verão ou de inverno
Na altura ouvi vários debates sobre o assunto. Julgo que o Estado Português manifestou a sua preferência pela manutenção do atual regime de mudança de hora bianual. Sério??? “Velhos do Restelo”?? Era suposto escolherem entre o horário de verão ou de inverno, e não manter do regime bianual de mudança de hora!
A culpa disto tudo é do Benjamin Franklin, que em 1784 achava que gastava muitas velas. Então vai de andar com o relógio com horas para a frente e horas para trás, para o dia ter mais luz solar e assim poupar dinheiro nas velas que comprava.
Depois as pessoas cansaram-se daquilo (como eu as entendo). No entanto, a mudança da hora foi retomada na 1ª Grande Guerra e depois na 2ª , pois os fracos recursos dos países, que entraram nestes conflitos, pediam poupança de combustível e mudar a hora era uma preciosa ajuda.
A grave crise de petróleo que aconteceu em 73, recuperou mais uma vez a grande ideia de Franklin para, de novo, se poder poupar energia.
Até posso entender e aceitar.
Acabou por se tornar uma diretiva europeia em 1981.
Mas diz-me, querida avó do meu coração, faz sentido andarmos nisto há 40 anos? 233 anos depois da ideia de Benjamin Franklin? 103 anos depois da adoção da ideia, na 1ª Guerra Mundial? Vamos continuar nisto de avançar e a recuar 1 hora, 2 vezes por ano, nos nossos relógios.
Para poupar energia?!
Fazem estudos para tudo e mais alguma coisa (tem que se dar emprego às pessoas). Lembro-me de um desses estudos, que chegou à conclusão que o horário de inverno é melhor para as criancinhas, pois assim “não vão para a escola de noite e que não fazem birras ao acordar”. Como?!?!
As crianças são sempre birrentas. Seja de noite ou de dia. Se fosse como quando eu era criança, um par de estalos na criança (e outro em quem faz os estudos) e acabavam-se logo as birras.
Quem cala as birras que faço quando é de noite às 5 da tarde?
Esses iluminados, acham que ainda se poupa energia nesta era de tecnologia, com tarifas bi-horárias e tudo o mais?
De repente lembrei-me do teu livro ” Só duas coisas que, entre tantas, me afligiram” e realmente há duas coisas que me afligem com isto da mudança da hora. Os médicos sempre disseram para tomar antibióticos há hora certa. Se muda a hora, qual a hora certa para tomar o medicamento? Devido à Pandemia, os bares e discotecas que tu gostas de frequentar estão fechados. Se estivessem abertos, com horário até às duas, a que horas terias de ir para casa?
Assim que o Confinamento terminar lá vais tu para a Ericeira. Ao final da tarde, podes estar em esplanadas, e fazer caminhadas na praia, pelo menos até às 20h. O que não é possível no horário de inverno!
Agora, (como anoitece mais tarde) vou fazer um passeio higiénico ao parque da Bela Vista e ouvir as conversas alheias para me inspirar para novas crónicas.
Gosto tanto do horário de verão.
Bjs e cuida-te.
Querido neto
Como tu sabes, eu gosto muito de sol. Mas a minha amiga Hélia Correia não suporta o sol, não consegue sair, não consegue escrever, nada. Como se hibernasse durante o verão.
E tinha um colega na Faculdade que, quando estava escuro, ia para a mesa do bar que não tinha ninguém, enfiava a cabeça nos braços e não dizia uma palavra.
E claro que me custa sempre muito estar em países onde anoitece muito cedo. Como também me custa muito estar em países onde há um sol radioso logo às 4 da manhã. No meio termo é que está a virtude, diz o povo e muito bem.
O meu filho e os meus netos viveram muito tempo em Inglaterra, na cidade de Leicester, e eu ia lá muitas vezes. Ia buscá-los à escola, chegávamos a casa cedo. Um dia dei por mim a dizer à minha neta, “Adriana vem ajudar-me a pôr a mesa para o jantar!”, e ela, “se quiseres eu vou, mas olha que são três da tarde!” E o que me custava ver o meu filho ou a minha nora irem ao supermercado de noite, ou seja, às 5 da tarde, quando chegavam da Universidade.
Em finais dos anos 70, tinha eu acabado de entrar no Diário de Notícias, o meu chefe chama-me e pergunta-me se posso ir à Suécia, porque o jornalista que devia ir adoecera e não havia mais ninguém disponível. Era um convite da Volvo-BM para mostrarem os seus novos camiões. Um assunto extremamente interessante para mim, com deves calcular, mas eu queria era viajar, e disse logo que sim (o que levou uma colega de redação, muito feminista, perguntar-me indignada ”e não telefonas ao teu marido a perguntar se podes ir??”)
Foi a primeira vez que fui à Suécia (anos depois voltei lá várias vezes, para as Feiras do Livro e quando um dos meus livros foi lá publicado) Tinha lá (e tenho) primas, o que também foi bom porque há muito tempo que não as via.
A Suécia é um país lindíssimo, e a Volvo-BM tinha oficinas em várias cidades. O que eu aprendi sobre a Volvo-BM não tem explicação, quantos centímetros entre o volante e o condutor, e entre o condutor e o tejadilho, etc…
Um dia fomos a Eskilstuna. Eu estava deslumbrada com a cidade, só não gostei muito porque às 6 horas era noite cerrada. Mas o pior estava para vir: às 4 da manhã o sol brilhava como se fosse meio dia. Fechei cortinados e estores –mas o sol entrava por todos os lados. Chocalhei o relógio várias vezes, a ver se não estava parado, mas não, eram mesmo 4 da manhã.
Por isso eu acho que, embora goste muito de sol, se deve manter por cá a mudança horária que temos agora. Lembro-me que houve uma altura em que se experimentou não mudar a hora. A Amália fazia anos e um grupo de fadistas decidiu ir fazer-lhe uma serenata diante da sua casa. Chegaram e ainda havia sol, esperaram, esperaram e acabaram por fazê-la. Acho que foi a primeira vez que alguém fez uma serenata ao sol…
Por isso espero que deixem estar assim: aproveitem o sol enquanto há sol, e a noite enquanto é noite.
Já agora, preciso que me deixes à porta as revistas que te pedi. De manhã ou ao fim da tarde, é quando te der mais jeito. Desde que não te esqueças.
Bjs e boa semana
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”
HERBERTO HELDER – O ACTOR
O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas –
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.
O actor em estado geral de graça.