“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”
sábado – 06 de março 2021
Querida avó,
Como estás?
Mais um fim de semana para ficarmos em casa. Estou tão cansado deste confinamento! Como sabes, grande parte do meu trabalho é feito a partir de casa. Mas uma coisa é estar em casa por opção, sabendo que posso ir beber um café, almoçar ou jantar contigo quando queremos, irmos trabalhar para a Gulbenkian (como tanto gostamos), ir ao teatro, ir ao ginásio … e voltar para casa para trabalhar. Outra coisa, completamente diferente, é estar sempre em casa. Vou correr às 8h da manhã para o Parque da Bela Vista, volto para casa e já não saio. Uma semana tem graça, um mês aguentamos, mas bem vistas as coisas andamos neste registo há mais de um ano.
O importante é continuarmos saudáveis! Este nosso “Diário” tem contribuído imenso para a nossa saúde mental. Tem sido tão bom fazer contigo esta viagem pelas memórias de Portugal.
Por falar em memórias de Portugal, sabes quem faz hoje 94 anos? A Maria de Lurdes Resende.
Claro que as gerações mais novas nem devem saber quem é a Maria de Lurdes Resende, provavelmente, nem nunca ouviram falar do nome. Mas as gerações mais velhas recordam-na perfeitamente.
Começou por cantar na igreja de Santa Cruz, no Barreiro, onde seu pai era organista amador. Entretanto, o pai morre, e Maria de Lurdes vai viver com os tios para Albergaria-a-Velha onde começa a realizar várias iniciativas ligadas à cultura na Casa do Povo.
Aos 18 anos a sua vida não volta a ser a mesma: vem a Lisboa, ao casamento da irmã, e aproveita para prestar provas na Emissora Nacional.
E pronto, tudo começou aí. Canta na Rádio Graça e em 1945 estreia-se na Emissora Nacional.
Passados uns anos, já depois de ter atuado em Paris, e ter passado pelo Brasil, começa a gravar discos. É eleita “Rainha da Rádio” num concurso promovido pela revista Flama. No ano seguinte é “Rainha do Espectáculo” num concurso da revista Plateia.
Em 1957 participa na primeira emissão da RTP. Passado um ano concorre ao Festival da Canção Portuguesa, (nome anterior do Festival RTP da Canção) voltando a concorrer outras vezes.
Tem mais de 200 músicas gravadas – e quem não se lembra de “Alcobaça”, por exemplo? Olha, aqui há dias, ainda ouvi a D. Lurdes cantar:
“Quem passa por Alcobaça
Não passa sem lá voltar
Por mais que tente e que faça…”
— desculpa mas, antes que ela começasse na conversa sem se calar, subi as escadas e não ouvi o resto do refrão que tanto me faz viajar às minhas memórias de infância.
Ouvi dizer há tempos que foi precisamente em Alcobaça que Maria de Lourdes Resende foi homenageada por ocasião dos seus 50 anos de carreira. E lá tem uma rua com o seu nome.
Ai avó, agora fiquei com imensa vontade de voltar a Alcobaça.
Vamos lá quando terminar o confinamento?
Visitamos o Mosteiro, o Castelo, espreitamos os rios Alcoa e Baça e fazemos o roteiro das famosas pastelarias.
Até podemos ir na próxima edição do “Doces e licores conventuais”.
Assim, “tiramos a barriga da miséria”.
Estás a ver como, mesmo confinados, conseguimos sair de casa através das nossas memórias.
Bom fim de semana.
Cuida-te.
Bjs
Bom tarde querido neto,
Querido neto
Depois de dias de enxurrada hoje tivemos um lindo dia de Primavera.
Nem queiras saber o que me ri quando falaste na Maria de Lurdes Resende! É que tu não sabes mas a Maria de Lurdes Resende entra num dos meus livros.
(Aqui que ninguém nos ouve, eu também não me lembrava, quem já escreveu mais de 80 livros não se pode lembrar de todos os pormenores. Mas sucedeu uma coisa gira. Eu sabia que um dos grandes sucessos dela tinha sido “A Moleirinha”: “Pela estrada fora, toc,toc,toc…etc” ,e tinha a ideia que o poema era do Guerra Junqueiro, mas não tinha a certeza. Vou ao Google—e em vez de me informarem do autor, não! Estampam uma página de um dos meus livros onde isso aparece!!! Grande Google! Pois então, se fores ao “Se Perguntarem Por Mim, Digam Que Voei”, uma das personagens um dia tem um pesadelo e, pelo meio de muita confusão, aparece-lhe a Maria de Lurdes Resende a cantar ”pela estrada fora, toc, toc toc”, e canta muito alto e canta muito baixo e de repente abre-se um grande buraco e toda a gente cai lá dentro ,incluindo a Maria de Lurdes Resende e a Moleirinha. Ainda me ri, porque não me lembrava nada de ter escrito aquilo.)
Mas falavas tu do aniversário da Maria de Lurdes Resende. Há muito tempo que não a vejo. Acho que a última vez que a vi, em carne e osso, foi num teatro. Estávamos ambas sentadas na plateia—mas não me lembro que teatro era, nem o que estávamos lá a fazer. Tenho a impressão de que as duas filhas—a Isabel e a Paula –ainda eram miúdas. A Isabel é, há um data de anos, colega da minha filha na revista “Activa”, vejam lá ao tempo que isso foi.
Mas quando eu era miúda, lembro-me de haver grande rivalidade entre a Maria de Lurdes Resende e a Júlia Barroso. Era sempre uma disputa terrível entre ambas na eleição da Rainha da Rádio. Lá em casa votava-se em peso na Maria de Lurdes Resende. As minhas tias enchiam postais e postais do correio (ainda haverá postais do correio? Acho que não) que depois a Menina Lucinda, que era a costureira lá de casa, ia pôr, quando saía, no marco do correio ao fim da nossa rua.
Eu confesso: sempre gostei mais da Júlia Barroso, e de uma sua canção lindíssima:
“Adeus
não afastes os teus olhos
dos meus….”
Mas ela tinha um defeito que as minhas tias não perdoavam: era linda de morrer. E, para as minhas tias, uma artista que fosse linda era também uma doida, devia ter para aí 500 homens e essas coisas todas (Coitada da Júlia, sempre tão fiel ao seu marido e aos seus seis filhos, que se retirou cedo e ainda foi professora).
Ora a Maria de Lurdes Resende, inteligente como era—e é…– fez do ser feia uma arma: e um dos seus maiores êxitos, para lá de “Alcobaça” e da “Moleirinha” (e sim, a letra é do Guerra Junqueiro) foi a “Feia”:
“Chamam-te feia
não te importes
tudo mente…
Não se discute
O gosto de ninguém…”
E a partir daí ela ficou sempre conhecida como a “feia mais bonita” da canção portuguesa.
Ah, e lembro-me de outra cantiga dela, com o António Calvário, chamada “Papá e Mamã”. Não porque fosse uma grande canção—que não era…–mas porque, para lá de eles os dois, também a filha Isabel, ainda muito pequenina, cantava o refrão. Era uma cantiga de origem francesa, e o refrão, que a criança cantava, dizia “papa aime maman / maman aime papa”. Mas como os portugueses são gente muito séria, a Isabel cantava “papá e a mamã / mamã e o papá”.(Desculpa, Isabel, mas eu tinha de contar a tua brilhante –embora brevíssima– estreia no music-hall português).
E pronto, o resto— prémios, medalhas, condecorações— já tu contaste. E todas merecidas.
Beijinhos
(Ah e claro que, quando isto acabar, quero ir contigo a Alcobaça. Que saudades das “cornucópias” do “Alcoa” …)
, uma das personagens um dia tem um pesadelo e, pelo meio de muita confusão, aparece-lhe a Maria de Lurdes Resende a cantar ”pela estrada fora, toc, toc toc”, e canta muito alto e canta muito baixo e de repente abre-se um grande buraco e toda a gente cai lá dentro ,incluindo a Maria de Lurdes Resende e a Moleirinha. Ainda me ri, porque não me lembrava nada de ter escrito aquilo.)
Mas falavas tu do aniversário da Maria de Lurdes Resende. Há muito tempo que não a vejo. Acho que a última vez que a vi, em carne e osso, foi num teatro. Estávamos ambas sentadas na plateia—mas não me lembro que teatro era, nem o que estávamos lá a fazer. Tenho a impressão de que as duas filhas—a Isabel e a Paula –ainda eram miúdas. A Isabel é, há um data de anos, colega da minha filha na revista “Activa”, vejam lá ao tempo que isso foi.
Mas quando eu era miúda, lembro-me de haver grande rivalidade entre a Maria de Lurdes Resende e a Júlia Barroso. Era sempre uma disputa terrível entre ambas na eleição da Rainha da Rádio. Lá em casa votava-se em peso na Maria de Lurdes Resende. As minhas tias enchiam postais e postais do correio (ainda haverá postais do correio? Acho que não) que depois a Menina Lucinda, que era a costureira lá de casa, ia pôr, quando saía, no marco do correio ao fim da nossa rua.
Eu confesso: sempre gostei mais da Júlia Barroso, e de uma sua canção lindíssima:
“Adeus
não afastes os teus olhos
dos meus….”
Mas ela tinha um defeito que as minhas tias não perdoavam: era linda de morrer. E, para as minhas tias, uma artista que fosse linda era também uma doida, devia ter para aí 500 homens e essas coisas todas (Coitada da Júlia, sempre tão fiel ao seu marido e aos seus seis filhos, que se retirou cedo e ainda foi professora).
Ora a Maria de Lurdes Resende, inteligente como era—e é…– fez do ser feia uma arma: e um dos seus maiores êxitos, para lá de “Alcobaça” e da “Moleirinha” (e sim, a letra é do Guerra Junqueiro) foi a “Feia”:
“Chamam-te feia
não te importes
tudo mente…
Não se discute
O gosto de ninguém…”
E a partir daí ela ficou sempre conhecida como a “feia mais bonita” da canção portuguesa.
Ah, e lembro-me de outra cantiga dela, com o António Calvário, chamada “Papá e Mamã”. Não porque fosse uma grande canção—que não era…–mas porque, para lá de eles os dois, também a filha Isabel, ainda muito pequenina, cantava o refrão. Era uma cantiga de origem francesa, e o refrão, que a criança cantava, dizia “papa aime maman / maman aime papa”. Mas como os portugueses são gente muito séria, a Isabel cantava “papá e a mamã / mamã e o papá”.(Desculpa, Isabel, mas eu tinha de contar a tua brilhante –embora brevíssima– estreia no music-hall português).
E pronto, o resto— prémios, medalhas, condecorações— já tu contaste. E todas merecidas.
E olha—agora é que é..—vai ver se chove.
Beijinhos
(Ah e claro que, quando isto acabar, quero ir contigo a Alcobaça. Que saudades das “cornucópias” do “Alcoa” …)
Bjs
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”
Por ocasião do 5º Aniversário da União de Freguesias de Alcobaça e Vestiaria, UFAV, no dia 27 Outubro, foi decidido homenagear a canção de Alcobaça e Maria de Lurdes Resende com um painel evocativo da mesma em forma de “graffiti” . O obra de grande dimensão da autoria de Daniel Eime, ocupa toda a fachada sul de um prédio situado na Av. Prof. Joaquim Vieira Natividade em Alcobaça.