“Ligados em tempo de quarentena”

13 abr, 2020 – 11:40 • Alice Vieira*

Testemunho da Alice Vieira para a Renascença.

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É um tempo difícil, claro. Mas as dificuldades também servem para nos pôr à prova. E quando tudo isto acabar, nunca seremos os mesmos, o mundo nunca será o mesmo.

Um corvo parou à beira da minha janela.

Eu nem sabia que na minha rua havia corvos.

Acabou por voar para outros sítios, e eu abri a janela, para sentir na pele o calor da manhã. O vizinho do prédio em frente também abriu a janela, e sorrimos e acenámos um ao outro. Eu nem sabia que aquele andar tinha gente.

Ligam-me amigos que eu não ouvia há anos, e eu ligo para amigos que eu nem sei se ainda estarão vivos porque ninguém tinha tempo de telefonar aos amigos.

Ligo para amigos que vivem em Itália, em Inglaterra e em Espanha, e é como se vivessem aqui ao lado. Porque de repente o mundo tornou-se mesmo naquela aldeia global de que o McLuhan falava.

Abro um livro, e leio na dedicatória: “lembra-te de mim”. Nunca mais tinha voltado a pegar neste livro, nunca há tempo para ler, mas agora li-o até ao fim e o amigo já morreu, e eu acho que nunca tive tempo de lhe dizer como gostava dele.

De repente desato a escrever cartas e a receber cartas, num tempo em que se dizia que já ninguém sabia sequer o que era uma carta.

De repente sigo a missa na Capela do Rato aos domingos, pela net—quando inventava sempre pretextos para ficar a dormir porque estava muito cansada ou tinha muito trabalho a despachar.

De repente, tudo o que era distante aproximou-se de nós. Estamos sozinhos em casa –e nunca estivemos tão acompanhados.

E percebemos agora que ninguém está só neste mundo. Que dependemos dos outros, como os outros dependem de nós. E que nenhum homem é uma ilha, como há centenas de anos John Donne descobriu.

É um tempo difícil, claro.

Mas as dificuldades também servem para nos pôr à prova. E quando tudo isto acabar, nunca seremos os mesmos, o mundo nunca será o mesmo.

Mas tudo depende daquilo que fizermos e pensarmos nestes tempos de quarentena.

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