O Gaspar foi aprender a tocar guitarra portuguesa para acompanhar a bisavó. Enquanto a fadista Celeste Rodrigues no estrangeiro é recebida de Limosine, em Portugal nem um táxi lhe pagam para ir à televisão …
R.C. – Diogo, o que sabe dos seus antepassados?
Diogo – Sei que a minha bisavó era espanhola, e pouco mais sei. O meu bisavô Manuel, cheguei a conhecer bem. Morreu velhinho, com mais de 90 anos. Conheci-o e à madrasta do meu avô, que era como se fosse minha bisavó também. Viviam na Lapa, lembro-me de lá ir em miúdo várias vezes.
R.C. – Da parte da sua avó Celeste, sabemos que os seus bisavós eram do Fundão, e todos tinham uma ligação à música.
Diogo – Já desde o meu tetravô. O pai do meu bisavô já era músico, e julgo que o avô dele também. O bisavô tocava instrumentos de sopro, assim como o irmão. O meu bisavô chegou a dar aulas de música. Aliás, eles vieram para Lisboa porque ele tinha um contrato para tocar numa orquestra cá em Lisboa.
R.C – Da parte dos seus tios-avós, não falando obviamente da sua tia-avó Amália Rodrigues, havia mais alguém ligado à música nessa geração da família?
Diogo – Não. Segundo a minha avó, cantavam todos bem, mas eu não me lembro de os ouvir cantar. Lembro-me muito bem de ouvir a minha bisavó, tinha uma voz lindíssima!
R.C. – A sua avó Celeste diz que “Ela tinha a voz mais linda do mundo!” É a voz que ela tem como referência.
Diogo – E não sei se não tinha! Lembro-me de ouvir a minha bisavó cantar, e arrepiava. Cantava o folclore da Beira, parecia quase flamenco, com aquele volteio todo, era giríssimo…
R.C.- Os seu bisavós faleceram com que idade?
Diogo – O meu bisavô não cheguei a conhecer. A minha bisavó conheci bem, morreu com 90 e tal anos. A avó Celeste foi buscar os genes à bisavó, embora fisicamente a minha avó esteja bem melhor do que a mãe estava com a idade dela, lembro-me bem da minha bisavó andar com o andarilho, mas nunca deixar de fazer as coisas. Lembro-me perfeitamente que ela, na casa do Alentejo, não deixava a empregada fazer o jantar, ela é que queria fazer, ia de andarilho cozinhar! Tinha as rédeas da cozinha e cozinhava mesmo muito bem.
R.C. – Sei que o seu avô materno, o ator Varela Silva, era órfão de mãe. Foi criado por quem?
Diogo – O meu avô foi criado pela tia Quina, pelo pai e pela madrasta. A minha bisavó morreu tinha ele 4 anos.
R.C. – Falando do seu avô, que é uma grande referência no teatro a nível nacional, e não marcou apenas uma mas várias gerações de representação aqui em Portugal, e é um dos primeiro atores que nos lembramos a ter um estilo menos formal na sua representação. Que recordações tem dele?
Diogo – Tenho recordações ótimas! Tanto dele como do teatro. Lembro-me perfeitamente de eu ser miúdo, eu e a Julie Sargent e o filho do Barros, (o Leitão de Barros era o diretor de décor do Teatro Nacional) e toda a parte de décor era por cima da teia do Teatro Nacional. Ocupava um espaço enorme e era onde se faziam os adereços todos. Lembro-me de sermos miúdos e de irmos para lá brincar. Na altura da peça Rómulo, nós brincávamos com as espadas e com os escudos, criávamos as nossas peças, brincávamos no teatro…era o nosso “recreio”. Era giríssimo! Também me lembro da primeira vez que vi uma peça com o meu avô, “As alegres comadres de Windsor”. Eu era seguramente mais novo que o meu filho Gaspar, deveria ter uns 6 anos. Ainda me lembro da primeira vez que vi o meu avô em palco… não sei se era a primeira vez, mas pelo menos é esta a primeira recordação que tenho! Depois vi sempre tudo o que ele fez e mais tarde cheguei a ser encenado por ele, mas eu era muito canastrão …
R.C. Então para si a representação acabou por ficar mais de lado? Ou é algo que continua a praticar?
Diogo – Muito, muito raramente! Faço pequenas coisas esporádicas, com pessoas de quem gosto, como um grupo de teatro com o qual colaboro há já alguns anos. Mas não tenho feitos muitas coisas ultimamente. A última coisa que fiz foi por brincadeira no filme do Bruno de Almeida, um papel muito pequenino. O meu lugar é mais detrás das cameras.
R.C. – Sente-se mais confortável?
Diogo – Sinto! Tem a parte artística, mas sem me expor tanto.
R.C. Ainda em relação ao seu avô Varela Silva, tinham uma relação próxima?
Diogo – Sim! Igual à que tinha (e tenho) com a minha avó. Bem, igual não era, pois com a minha avó vivi quase toda a minha vida, mas tinha no meu avô quase uma figura paternal.
R.C. – O seu avô dava-lhe conselhos? Quando diz que se sentia “canastrão” no teatro, quais os conselhos que o seu avô lhe dava?
Diogo – O meu avó não tinha essa opinião, eu é que achava que sim! Na minha estreia, deu-me uma foto dele assinada, com uma dedicatória muito bonita, que ainda hoje guardo. Dizia “ Para aquele que há-de ser o ator Diogo Varela, do seu já admirador Varela Silva”. Mas efetivamente a representação não é a minha praia!
R.C. – É evidente que existem laços familiares que unem estas quatro gerações, e são laços muito fortes. Este meio do fado, a linguagem das artes, é uma coisa que está presente de uma maneira muito forte na vossa família. Por exemplo, quando o Diogo filma, pega em temas que também estão ligados ao fado. Há videoclipes, há documentários … o tema é muitas vezes o fado. Esta proximidade é alguma coisa que para si foi natural ou é algo que lhe parece apenas que faz sentido e que quer seguir por aí?
Diogo – Penso que é um misto disso tudo! É natural e faz sentido. Ou melhor, tem feito sentido até agora. O primeiro documentário longo que fiz era sobre a minha avó, e esse fazia todo o sentido! Era alguém de quem eu queria falar e estava muito próximo. Os outros dois documentários que fiz sobre fado nascem pela vontade que eu tinha de que ficassem documentadas as histórias destas duas pessoas tão importantes. Não havia nada! O Fernando Maurício não tinha nada, vi-me aflito para encontrar alguma coisa dele nos arquivos da televisão, e o mesmo aconteceu com a Beatriz da Conceição. O Fernando Maurício deve ser a maior escola de fadistas homens que há no país. Quase toda a gente emita o Fernando Maurício a cantar, os miúdos todos…! E com a Bia é a mesma coisa. Nós temos muita gente a assumir que uma das influências que tem é a Beatriz, gente como a Carminho, a Raquel Tavares, a Ana Moura… Como tal, estas pessoas têm histórias que deviam ser contadas e documentadas para as gerações futuras. Mas, tirando isso, não tenho muito mais vontade de fazer documentários sobre o fado. Ou seja, tenho a vontade de fazer um sobre as coletividades onde o fado foi mantido, pois acho que deve ser um assunto giro. Tenho um projeto no qual já ando a trabalhar há alguns anos, que é um musical de fado filmado. É um projeto fantástico, mas não é fácil de obter financiamento para que aconteça. Mas estamos aí, na luta, vamos aos concursos todos, até se conseguir investimento para o projeto.
R.C – Disse-nos que tem vivido grande parte da sua vida com a sua avó. A sua mãe ainda vive fora?
Diogo – Sim, nos Estados Unidos da América. Eu também lá vivi lá uns tempos, até ao final do liceu, mas depois voltei para Lisboa pois é cá que em sinto bem, gosto muito mais de viver aqui.
R.C. – Como fazem para matar as saudades?
Diogo – Hoje em dia é facílimo, temos o Skype, e a minha mãe vem cá várias vezes.
R.C. – Os seus filhos mostram uma óbvia ligação com as artes e parecem ter escolhido este caminho para si…é algo que preocupa? Quão próximo está das escolhas que fazem?
Diogo – Não me preocupa nada, antes pelo contrário. Têm o meu total apoio e incentivo. Nos dias que correm, nada é seguro e o que mais quero é que eles possam, no mínimo, fazer algo de que gostam, que sejam felizes e de bem com a vida.
R.C. – O que sente ao ver o seu filho Gaspar a tocar guitarra portuguesa e a acompanhar a bisavó?
Diogo – Sinto um orgulho enorme quando vejo os meus filhos em palco, quer seja o Gaspar, com a sua guitarra portuguesa, ou o Sebastião, com a sua banda. É óbvio que é uma ternurinha ver o Gaspar tocar para a bisavó, são 80 anos de diferença, é um amor e uma recordação linda que ele sempre terá da avó Celeste.
Sebastião e Gaspar (bisnetos)
R.C. – Os seus filhos, Sebastião e Gaspar estão aqui a ouvir a nossa conversa. Sabemos que ambos estão na música já com os dois pés, mas algum de vós se sente tentado pela área da representação?
Sebastião – A representação nem tanto, mas gostaria de seguir o caminho do meu pai e estar a trás das cameras. A representação chama-me um pouco a atenção, mas também não é o que mais quero.
Gaspar – Nem eu. Mas na escola já representei! Faço parte de um grupo de teatro na escola.
R.C.- O seu bisavô Varela Silva, estreou-se no teatro tinha 11 anos, também numa peça na escola.
Gaspar – Eu tinha 10 anos!
R.C – Mas essa experiência não fez com que sentisse o “bichinho” do teatro?
Gaspar – Não! Também quero seguir a carreira do meu pai. Quando tiver a idade do meu irmão, vou tirar o curso.
R.C. – Como aconteceu isto de querer tocar guitarra para a sua avó?
Gaspar – Sempre gostei de fado e de ouvir a minha avó, e quis aprender para poder acompanhá-la. Disse-lhe que ia fazer isso, e ela respondeu que quando eu tivesse aprendido ela já teria ido «viajar»…eu disse que então esperava que ela voltasse.
R.C. – Lembra-se de ouvir fado desde quando?
Gaspar – Desde sempre.
R.C. – É diferente para si ter uma bisavó? Em que é os avós diferem dos pais, por exemplo?
Gaspar – Só sei que adoro a avó Celeste, e que tenho sorte de ter uma bisavó, ainda por cima esta bisavó…
R.C. – E continua a dizer que ela é a maior fadista do mundo?
Gaspar – Claro, a avó Celeste a Tia Amália!
R.C. – Falando dela, Diogo, até que ponto conheceu bem a sua tia-avó Amália Rodrigues?
Diogo – Conheci muito bem, vivi um ano em casa dela. Quando a minha mãe foi para a América eu e as minhas duas irmãs ficámos em casa da Amália. A minha avó teve uma tournée enorme em França, esteve cerca de 4 meses seguidos lá, e para não andarmos de um lado para o outro acabámos por ficar na casa da nossa tia-avó durante um ano inteiro. Era giríssimo! Como era mais crescido do que as minhas irmãs, tive a sorte de ver, perceber e desfrutar, daquelas tertúlias que havia, pela noite fora.
R.C. – Esta coisa de se ter um tia-avó que está no Panteão Nacional é marcante para si?
Diogo – É óbvio que eu sempre tive noção e apercebi-me da importância da minha tia. Mas só tive noção real da dimensão dela quando ela faleceu. Toda a cerimónia, a quantidade de gente … Para mim, até à data, era apenas a minha tia Amália. Eu sempre a tinha conhecido assim, a cantar, a viajar, a encher casas de espetáculos… Só depois do funeral é que me apercebi da dimensão do nome Amália Rodrigues!
Celeste – O Diogo conta muito bem anedotas. A minha irmã adorava ouvi-lo, então filmava-o para depois mostrar às pessoas.
Diogo – Nós tínhamos um código giro. Encontrávamo-nos à Hora do Fantasma. Havia muita gente que aparecia na casa da minha tia, eram serões enormes. Quando a maior parte das pessoas ia embora ficava só um grupo restrito, mais ligado a ela, mais próximo dela, e esse grupo subia para o quarto dela para acabar lá o serão. Ficavam a ver filmes, a contar histórias, às vezes durava até de manhã. Eu, regra geral desaparecia a seguir ao jantar, e combinava com ela à Hora do Fantasma que era a hora em que a casa já estava mais vazia e que só restava o grupo restrito.
O meu tio César tinha imensa graça. Também não tinha muita paciência para certas pessoas que iam lá a casa. Lembro-me de uma vez ele descer as escadas de pijama e roupão, e a minha tia muito indignada: “Oh César parece impossível vir para aqui assim vestido, então não vê que temos cá convidados?” O meu tio responde “ Eu não convidei ninguém!” E todos acabavam por rir muito… nem percebiam que não era piada!
R.C. – Pensando nesta família, que é incontornável no panorama da cultura portuguesa, como é que o Diogo e os seus filhos vivem isso? Quando por exemplo dizem a alguém que são netos do Varela Silva e da Celeste Rodrigues, sobrinhos-netos da Amália Rodrigues …
Diogo – Não dizemos! Existem pessoas que já sabem, outras se dizemos não acreditam ou, se acreditam, não dão importância.
R.C- Mas ter essa “herança” é algo que vos dá um certo lastro? Ou incentiva a querer voar mais alto?
Diogo – Este legado familiar é algo que nos orgulha bastante. Queremos honrar o nome da família e continuar a dar o nosso melhor. Mas não vemos os nossos familiares como comparação, apenas queremos ser nós e aproveitar o que aprendemos. Cada um deles fez a sua carreira, foi reconhecido como tal, e cada um de nós vai construir a sua carreira, mas sem ter o peso das comparações.
R.C. – O Sebastião apesar de querer seguir a carreira de cineasta do pai, também toca na banda The Youth, desta forma acaba por ter visibilidade e exposição. Podem surgir comparações … Como isso é sentido? Para que lado pende a balança? A “herança” familiar é um vantagem?
Sebastião – Nem sei bem, porque o género que eu toco distancia-se por completo da carreira da minha bisavó, do meu bisavô, da minha tia-bisavó Amália …
Tento fazer o melhor que posso e não me podem exigir mais por isso.
R.C.- Ir para uma banda e não seguir o caminho do fado ou da representação, serviu precisamente para marcar essa distância?
Sebastião – Nunca me passou isso pela cabeça sequer! Tenho estes antepassados como poderia ter outros quaisquer. Quando olho para a minha bisavó, não olho para ela como uma figura pública, não olho para alguém que tem a carreira que ela tem. Olho para ela acima de tudo como minha bisavó.
R.C. – No caso do Gaspar, aprendeu a tocar guitarra portuguesa para acompanhar a bisavó, e tudo isso é motivo de orgulho para o pai e para a bisavó, apesar de dizer que se interessa também pelo cinema, mas projeta o fado no seu futuro?
Gaspar – Nasci numa família de fado e é isto que eu quero! Quero seguir o fado à guitarra e a cantar.
R.C. – Se fossem convidados a participar num concurso de talentos aceitariam o convite?
Sebastião e Gaspar – Nunca! Tal e qual como a nossa bisavó, o que nos interessa não é a exposição mediática, mas sim trabalhar muito e com qualidade!
Diogo – Todos nós primamos pela descrição… A minha avó até atende o telefone com uma voz diferente para não a convidarem para nada de televisão. Usa a pronúncia do Fundão e finge ser a empregada, diz sempre: “A senhora não está!” (risos)
Celeste –Em primeiro lugar, eu não queria ser famosa. Sei pela experiência da minha irmã que a fama pesa muito! Existem muitas pessoas que fazem o pino para aparecer… Gosto de cantar as minha cantigas, e sinto-me muito bem assim, mas nunca quis ser famosa! As coisas que se passam, as invejas, os boatos, as coscuvilhices … isso não é para mim! Gosto é de estar sossegada.
R.C.- Mas ir à televisão também é mostrar-se às pessoas que gostam de si…
Celeste – Eu fujo ao máximo. Fui a primeira pessoa a ir à televisão, na edição experimental na Feira Popular e depois no primeiro dia, era a Vera Lagoa a locutora de continuidade. Também ia ao Lumiar quase todas as semana, na altura ganhava 30 contos (150 euros) de cada vez que lá ia. Agora não pagam nada a ninguém e muitos ainda pagam para lá ir …Com esta idade já não me apetece andar a ir para televisão para cantar estar lá horas e apenas cantar um fado, sem receber nada. Nem o táxi me pagam! E isto só acontece cá. Cantei no mundo inteiro, fui a tantos programas de televisão pelo mundo fora, e sempre me pagaram. Há uns anos convidaram-me para ir ao programa mais visto na televisão francesa, mandaram-me bilhetes de avião em 1º classe, fiquei num hotel de 5 estrelas com limusina à espera, com cachet como se fosse cantar num espetáculo! Tanto em Paris como em Londres fui recebida sempre como uma estrela de Hollywood … e aqui, é como é!
R.C. – Se conseguirmos uma limusina acompanha-nos à televisão?
Celeste – Nunca se sabe! Já disse tantas coisas, já não há mais nada para dizer. Mas fica combinado: quando fizer 100 anos, dou-vos outra entrevista!