“Lembrar Matilde Rosa Araújo, no centenário do seu nascimento”

“Diário de uma avó e de um neto”

Terça-feira, 06 de julho 2021

Querida avó,

Faz hoje 11 anos que morreu Matilde Rosa Araujo.

Tinha completado, recentemente, 89 anos quando morreu na sua casa em Lisboa.

Confesso-te a minha mais pura ignorância. Nunca li nenhum livro da escritora.

No entanto, uma coisa é não conhecer a obra, outra coisa é nem querer saber quem foi a pessoa (como acontece tantas vezes). Como tal, conto com a tua clarividência, para partilhar com este neto, que tanto te ama, quem foi esta mulher que tu tão bem conheceste.

Sei que escreveu cerca de 25 livros infantis. Nasceu em lisboa e estudou em casa com professores particulares (muito comum na época para algumas famílias) até ter entrado na Faculdade de Letras.

Mais tarde foi professora de Português e de Literatura Portuguesa e formadora de professores.

Para alem dos livros infantis, foi autora de mais de 40 livros (contos e  poesia para adultos) e, para bem de todos nós, dedicou-se à defesa dos direitos das crianças através da publicação de livros e de intervenções em organismos com actividade nesta área, como a UNICEF.

No Concelho de Cascais, mais precisamente em São Domingos de Rana, existe o Agrupamento de Escolas Matilde Rosa Araújo.

Sempre que vais às escolas perguntas aos miúdos: “ Sabem quem foi a pessoa que dá nome à vossa escola”? Tomara que saibam!

Se Matilde Rosa Araújo fosse viva teria completado 100 anos no passado dia 20 de junho.

Já referi a cima a minha ignorância em relação à obra da escritora. No entanto, tendo  Matilde Rosa Araujo sido uma personalidade que tanto contribuiu para a cultura, e para a educação e direitos das crianças, não era suposto este ano existirem várias iniciativas para celebrar o seu centenário?

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, assinalou o centenário da professora e escritora, convidando a também escritora Luísa Ducla Soares a evocar a sua memória lendo um poema da sua autoria.

Mas tirando este apontamento, não ouvi mais nada sobre o assunto.

Talvez a ignorância não seja só minha!  

Tu que sabes tudo, o que Matilde Rosa Araujo era ao Rosa Araújo que foi deputado e Presidente da Câmara Municipal de Lisboa? Foi graças a ele que se lançaram as obras da abertura da Avenida da Liberdade, e a destruição do Passeio Público, o que provocou uma grande polémica na época.

Para a semana tenho a segunda dose da vacina.

Aguardo pela mensagem de confirmação.

A vacinação esta semana tem estado uma loucura. Com filas intermináveis.

Parece que que na próxima semana não vai ser diferente.

Quem sabe irei a aproveitar o tempo de espera, para me iniciar nas obras da Matilde Rosa Araújo. 

O que aconselhas ao teu neto?

Bjs

Querido neto,

Se fosses mais velho, terias lido histórias da Matilde Rosa Araújo na escola. Agora acho que os professores já não dão os seus textos, o que é uma pena.

Eu conheci a Matilde no princípio dos anos 60, tinha eu acabado de entrar para o Diário de Lisboa. Nessa altura o jornal fazia todos os anos um concurso chamado “O Natal Visto Pelas Crianças”. Eram caixotes e caixotes de textos que era preciso ler para escolher. O júri era de peso: José Gomes Ferreira, Alice Gomes, a Matilde, o pintor Rocha de Sousa (para avaliar os desenhos) , e o prof. Calvet de Magalhães, que era o organizador. Eu fazia a ligação entre o júri e a redacção do jornal, onde depois os textos premiados eram publicados.

É claro que escrever textos sobre o Natal podia ser chatíssimo, não se podia fugir muito das mesmas coisas, havia textos intragáveis. Então nesses casos o Zé Gomes pegava no texto e dizia “ó Matilde, leia lá!” E, na voz suave e mansa da Matilde, todos os textos eram uma maravilha.

Mas a Matilde, com aquele seu ar manso e bem comportado, tinha uma graça que levava toda a gente à gargalhada. E fazia coisas de que ninguém estava à espera. Quando ainda havia polícias sinaleiros nas ruas, ela parava o carro, saía e ia cumprimentá-los para lhes agradecer o trabalho que faziam—e nem ligava às buzinadelas dos carros atrás do seu carro parado.

Um dia ligou-me do hospital. Tinha partido um pé. Então já não era muito nova e eu assustei-me. Fui lá vê-la.

“Ó Matilde, como é que partiu o pé?”

“Caí”

“E o que é que estava a fazer? “

“Estava a dançar o tango”.

E as coisas que ela contava…

“Há dias, ia eu na Baixa, aparece-me uma rapariga, toda aos beijos e abraços, e aos altos berros, ai madrinha, que bom vê-la, ainda não tinha tido tempo de lhe telefonar a agradecer, mas muito obrigada, madrinha! ,  muito obrigada!  se não fosse a madrinha eu nunca tinha entrado para a PIDE! Muito obrigada!”

E ela a contar que tinha ficado parada no meio da rua, não conhecia a criatura de lado nenhum, e ainda por cima toda a gente se tinha virado para a ver, com aquela história da Pide…

Durante vários anos seguidos, eu, ela e o António Torrado éramos o júri de um concurso de textos, organizado por uma série de escolas do Porto. A primeira hora era para a gente se rir com ela à gargalhada. A meia hora que sobrava era para trabalharmos.

Claro que como escritora era uma grande autora de poemas para crianças. E, apesar de já não seres criança, ainda vais muito a tempo de ler alguns livros dela. Aconselho-te, sobretudo “Fadas Verdes” (premiado em 1966, pela Fundação Gulbenkian) “Anjos de Pijama” “O Sol e o Menino dos Pés Frios”, “Mistérios” e “O Palhaço Verde “ (premiado no Brasil em 1960, como o melhor livro estrangeiro para crianças). São os meus preferidos.

A Matilde faria agora 100 anos.

Tens toda a razão: o centenário da Matilde merecia muito mais–embora me tenha agradado que o Presidente da República se tivesse lembrado… As pessoas têm a memória muito curta… Mas esperemos que até ao fim do ano, ainda alguém se lembre.

Lembro-me sempre, no dia do enterro, de estar com a minha filha no velório na SPA.  E só nos recordávamos de coisas divertidas e malucas que ela costumava dizer…

E, de repente, eu digo esta coisa extraordinária para a minha filha:

“Mas por que raio está tudo com cara de enterro?”

E a minha filha:

“Porque isto é um enterro.”

Tenho a certeza de que, onde quer que ela estivesse, também se escangalhou a rir.

Ah, e não era nada ao Rosa Araújo de que falas. Ela chamava-se; Matilde Rosa…e depois três apelidos, sendo Araújo o último “

E pronto, meu neto, vai ler uns livros que só te faz bem.

Bjs e cuida-te.

Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto.”

Entrevista a Alice Vieira e Nelson Mateus.